Cansada de dançar e perambular pelas ruas e ladeiras de Olinda, Amália, já na boquinha da noite, foi tentada a tirar uma soneca, numa das mais antigas igrejas da cidade. A porta central estava metade aberta. E sua intenção foi bem natural: quem tem sono dorme. O cansaço era grande e não tinha dinheiro para pagar alguma pousada. Sua veste era sumamente reduzida e não passava de um “fio dental”, com o qual já vinha sambando ou marcando o passo, dois dias sem parar. Convencida estava de que nada se opunha à decência.
Ora, aquela igreja de portas largas abria-lhe os braços, como refúgio, como também o lugar a quem, constrito, quisesse arrepender-se dos excessos contra o amor no Carnaval, no esfrega-esfrega da folia, rezar ou silenciosamente meditar. Na verdade, carnaval deriva de “carne”, onde se esquece a presença do espírito. Quando já cochilava, deitada, num espaçoso banco de madeira, acalentada pela brisa, foi cutucada pelo sacristão, que lhe indagou o que ela estava fazendo ali. Bocejando, respondeu que estava descansando, e que não teria dinheiro para pagar algum lugar para passar a noite, nas concorridas pousadas da cidade. O sacristão apontou-lhe a porta da saída, fora a mesma da entrada, em alta voz verberando que aquele lugar era de respeito e não de brincar carnaval.
Amália abriu bem os olhos, explicando que não estava dançando, nem cantando, mas apenas dormindo, e disposta aos sonhos mais puros do mundo. Ele, já perdendo a paciência, argumentou que ela, mesmo dormindo, estava com veste não condizente com o ambiente sagrado e ainda mais em posições sensuais e tentadoras. Imagine como se mortificaria o jovem vigário se a encontrasse, sozinha, seminua, na igreja quase escura, onde reluzia somente a luz do sacrário, na proximidade do altar. Constrangida, o cansaço fez Amália implorar um pano para se cobrir, ao que lhe foi respondido: “Aqui não há cama, nem cobertor”…
Contudo, aquele homem, já beirando os sessenta, começou a se engraçar das exuberâncias da jovem, esforçando-se para não enfraquecer suas exigências e admirando o corpo distendido, exposto acima da invisibilidade da alma. Foi quando se lembrou também das admoestações ditas nas pregações dominicais, sobretudo a de que “a carne é fraca”, chega a vencer qualquer entusiasmo do espírito. Retomando a respiração, ameaçou: “Então, Dona, sai ou não sai”? Ela, irritada, retrucou: “Então, o Senhor me tire!” .
Indeciso, deslocou-se de um lado para outro, saindo para colocar a tramela na porta e garantindo que chamaria o Padre, diante da falta de condições para carregar nos braços tamanha tentação. Era já o fim da tarde e, para bem dizer, começo da noite, não havia viva alma, um só fiel, na Igreja. Enfim , a moça não estava despida; vestia pouca roupa, mas o suficiente para cobrir o essencial. Fechada a vetusta porta, parou diante de Amália sonolenta, em seguida, apressou os passos para a sacristia à procura do Padre, e não voltou mais.