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Blog do Vavá da Luz

             Avó e avô, antes e depois dos pais (Damião Ramos Cavalcanti)

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          Cada um desses tem uma história bem maior do que as nossas, dentro das quais nós estamos incluídos. Os pais dizem que os avós são uns privilegiados, com muito amor dos netos e quase nenhuma responsabilidade, entregam ou dão tudo que os netos pedem, sobretudo para desfazer as ordens severas dos pais, no seu dicionário não existe a palavra “castigo”. Os avós gastaram todos os castigos, quando precisaram deles para disciplinar seus filhos que, quando crianças, tiveram seus avós. Mesmo em diferentes tempos, mas quase numa mesma cultura, valores e hábitos sucedem e se sucedem, para os avós, antes e depois dos pais.
          Ainda na década de 60, quase ao lado do bar Teve Jeito, em frente à Sinuca de Adonis, parava o ônibus da Campinense, de Vandi Brito, passando em Goiana com destino a Recife, linha depois vendida a Severino Camelo. A esses ônibus de parada obrigatória, serviam roletes, tapiocas, cocadas, amendoins torrados, e também laranjas descascadas por uma máquina, que retinha minha admiração: perfeitamente deixava essas frutas quase peladas, sem alguma ferida. Chupar laranja era, então, costume nas estações de trem, nos campos de futebol, nas peladas, nas feiras e até nas festas da padroeira. Fazia parte também da nossa lancheira para levá-la como merenda escolar. Assim, a laranja bruta, barata aos montes nas feiras, tornava-se refinada e cara sem a casca, até aos domingos às portas da bela Igreja Matriz de Itabaiana.
          Minha avó, chamada Fina, pelo avô Joca, pais da minha mãe Lia, aos meus olhos de criança, se mostrava uma admirável circense. Descascava laranjas para os netos perfeitamente, com amor, por isso mais doces do que as cortadas pelas citadas engenhocas de ferro e metal. Delas não descia alguma gota que não fosse chupada pelas nossas bocas. A destreza não se limitava aí, esperávamos ansiosos a avó Fina lançar as finas e inteiras cascas, pendurando-as nos caibros e ripas do telhado. Errava nenhuma vez, era uma série de lançamentos sob aplausos dos netos, que esperavam o fim do espetáculo: – Vou cuidar da sopa de feijão. Bem em cima do fogão à lenha, restava, parecendo uma cortina, o êxito da minha avó. Melhor do que a doçura da laranja era a confiança na sua pontaria, mais certeira do que os punhais atirados no alvo, em espetáculo dos circos visitantes.
         Guardar as cascas das laranjas era recomendação do meu avô. Não sei onde ele aprendeu que a casca da laranja serve para “prevenir” e curar várias doenças com inflamação e cardíacas. Seu chá é calmante e melhora a digestão. Hoje, a internet completa que ela contém Vitamina C e é antioxidante. Mas minha avó sabia de outras finalidades, suas raspas eram adicionadas a diversas receitas, sobretudo às de bolo, doces e biscoitos, também retirando-as do telhado para acender a lenha ou o carvão do fogão, e enquanto ali penduradas, espantavam mosquitos, muriçocas pelo seu odor cítrico.
         A última vez que a vi, prometeu que faltavam dias para ela ser centenária. Já não mais jogava as cascas de laranjas para guardá-las no telhado; então, nenhum combate aos mosquitos, e dentre esses lhe vieram os da dengue, que adoeceram minha bondosa avó, interrompendo, em março de 1997, seu desejo de completar cem anos de vida.  
         A história e a literatura narram grandes fatos notáveis, testemunham feitos das nossas civilizações, mas não negam espaço à memória da simplicidade daqueles que conviveram conosco; a história não exclui, também contém os simples, os que amamos e os que não esquecemos.      

 

DESTAQUE: Bem em cima do fogão à lenha, restava, parecendo uma cortina, o êxito da minha avó.

             

Damião Ramos Cavalcanti

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