Vi, ontem, um senhor de cabelo esbranquiçado, descendo os degraus da Caixa Econômica, alegremente assobiando. Não importava a idade, há anos, a meninada também assoviava. Alguns adultos diziam assobio, outros, assovio, o que as crianças repetiam. Mas, faz tempo, nunca mais vi um jovem assobiando. Li muito, tanto em crônicas, como nos contos, nos romances, ou na poesia, que o vento das montanhas, ao passar pelas frestas das portas, das janelas ou das telhas, assobia. E como é bom, à noite, no campo, ouvir isso no escuro, antes de adormecer…
Assobiar é uma coisa cultural, mais nos países quentes do que nos frios, nem sempre em todos os lugares. Na África, onde as etnias têm, desde então, sopro ou alma, ritmo e música, o costume de assobiar. Em Yorubá, significa sufe, e o substantivo assobio, ofé ou ífé. Mas, aqui, onde acontecem tantas boas e ricas influências musicais africanas, a juventude tem sido asmática, sem sopro e assovio. Nem samba, nem frevo, nenhum forró ou coco de roda. Jovens, às vezes, usam o assobio para, infelizmente, vaiar. E ao contrário, utiliza-se o assobio, fino e estridente como os xexéus, expressando admiração ou aplauso.
Meu pai assobiava. Dizia ele que assobiar faz bem à respiração. Sem pulmão, ninguém assovia. Assobiava ele e pedia a Zé Assovio músicas do seu gosto, maravilhosamente executadas. Prometia-se ao assobiador sua ida ao Show de Auditório da PRA8, na Rádio Clube de Pernambuco. Espalhavam que Zé do Assovio ganhava dinheiro, contratado pelos donos de concriz ou de papagaio. Corrupião ou concriz imita as músicas assobiadas. Em Campina Grande, na bela casa construída sobre pedra, do Dr. Antonio Targino e da Dra. Marluce, admirei, várias vezes, o seu concriz, preto e alaranjado, solto, passear sobre móveis, andar no chão, como se fosse um pet, e cantando garbosamente o Hino Nacional.
Zé Assovio mantinha sua fama pelas ruas da cidade, onde reiteravam a promessa de levá-lo a Rádio Tabajara, em João Pessoa, ou às de Recife. Mas, ele se satisfazia em ser entrevistado por Nabor, jornalista impressor do jornal quinzenal da cidade, A Folha. Maior notoriedade lhe dariam as rádios, especialmente a Jornal do Commercio, que se caracterizava com o slogan: “Pernambuco falando para o mundo”, ao que os itabaianenses replicavam: “E para Itabaiana também…” Numa das entrevistas, o mestre Assovio, sem diploma, soltou um dos seus geniais repentes. Foi-lhe indagado do que ele mais gostava na vida. Ao que surpreendeu: “Quando assobio no escuro”…
No início de 1970, já sabendo desse prazer de “assobiar no escuro”, voltava de Roma, da Itália, e no dia em que desci do navio Eugenio C, o amigo Sivuca fez uma seresta no terraço da minha casa, 99 da Rua Floriano Peixoto, no Alto dos Currais, comemorando meu retorno a Itabaiana. O nosso “sivuquismo”, meu e de Jessier Quirino, não esquece os dias de glória de Sivuca nos Estados Unidos, quando por insistente convite da extraordinária cantora sul-africana, Miriam Makeba, Sivuca se tornou diretor musical, arranjador e violão da “planetária” canção Pata Pata. Sivuca era assim, quanto mais famoso, mais simples ou um dos nossos na sua cidade, ou no seu berço Campo Grande. Foi nessa ocasião, olhando para Sivuca, que me vieram à mente a privilegiada escuridão de Zé Assovio e os que, ao orar ou a meditar, fecham os olhos. Perguntei a Sivuca por que também os fechava, não desconhecendo seu albinismo, ao que respondeu, sorrindo: “No escuro, eu vejo mais a música”…