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                À boa cabeça, há lugar para chapéu (Damião Ramos Cavalcanti)

 

                À boa cabeça, há lugar para chapéu
  

          Quando se vai ao cinema, a preocupação não é só a escolha do filme, mas também pegar um bom lugar, que nos agrade, para assistirmos ao filme, sem perder áudio e vídeo, confortavelmente. Há quem prefira na frente, uns, no meio e outros lá atrás. Começada a sessão, lâmpadas apagadas, senta-se à minha frente um senhor alto, corpudo; além disso, usando um chapéu de abas largas. Procurei outro assento, mas todas as fileiras ocupadas, restava-me virar pra um lado, pra outro, e nada via, somente ele; o chapéu se tornou assunto do filme, na minha imaginação, predominando sobre o enredo que tinha escolhido. Veio-me à memória quando recolocava, nas respectivas caixas, os chapéus, no balcão oferecidos aos clientes…    

          A loja do meu pai, também chamada “Loja do seu Inácio”, tinha um nome que achava um pouco extravagante: A Barateira, principalmente quando, em briga de menino, insultavam-me, dizendo que ela vendia baratas. Ao contrário, era sortida e vendia de tudo: tecido, “roupas feitas”, sombrinha, guarda-chuvas, móveis, cama patente, colchões, bicicletas monark  e bristol, velocípedes, perfumes, brilhantina, tantas outras coisas… e chapéu. Além do Panamá, os de massa de boa qualidade, como Cury, Ramenzoni, e Prado, em referência ao Prado Fluminense, que veio a ser o Jockey Club do Rio de Janeiro, então capital do país. As preferências exigiam tipos sofisticados, como Gangster, Fedora, Country e Panamá, menos os redondos, puxados à moda inglesa, como o usado no filme de O Gordo e o Magro. Quanto aos tipos de chapéu, no interior, não havia os femininos, também porque as mulheres não o usavam tanto, como os homens. Exceto em alguns casamentos chics, considerados da aristocracia na cidade.  
           A Barateira atendia a quem nela entrasse, vendendo suas mercadorias inclusive aos que vinham do campo, todas as terças-feiras, menos, por proibição das “senhoras de família”, às conhecidas mulheres da Rua do Carretel, as quais, até então, não tinham tido a coragem de ir ao frequentado comércio da Avenida Presidente Epitácio Pessoa. Até o dia, em que Nevinha, dona do bordel, de altiva têmpera, determinou-se desobedecer a esse ditame, que era do agrado religioso do Vigário e do Pastor da cidade. Ela e as mais famosas e hermosas, conhecidas à noite, de braços dados, todas em atraente chiquê, e, exatamente, para provocar, de chapéu de luxuoso tule, foram escolher suas compras nas vitrines… Foi um alvoroço! Ora, já era o fim da década de 50. A Barateira as acolheu e perdeu algumas clientes, então cinco severas moralistas da “alta sociedade” reclamaram tal “desmoralização” ao jovem Delegado, que lhes sentenciou: “Nada posso fazer, elas têm o direito de inclusive rezar, ao lado de vocês, na Igreja”. Achando-se insultadas, ameaçaram exonerar o Delegado, prometendo exigir sua demissão ao Governador. E la nave va, o comércio continuou, cresceu e tudo voltou ao normal…  Admiradas ficaram Nevinha e suas lideradas; bem vista a ousadia da A Barateira em vender à vista para aquelas freguesas, e a coragem do jornalista Nabor, do jornal A Folha, por noticiar e fazer repercutir essas coisas itabaianenses. Enfim, aos envolvidos com tal episódio, ousadas e corajosos, digo eu, tire-se o chapéu.
          O chapéu não vem sendo usado somente no cinema, mas também em outros logradouros da cidade, de crescente e surpreendente uso, seja para proteger a cabeça do sol ou disfarçar a calvície, seja por elegância. Atualmente, até na vetusta Academia Paraibana de Letras, vestem-se assim os confrades acadêmicos Milton Marques, Humberto Mello, Luiz Nunes, Ramalho Leite e Hildeberto Barbosa, que, nas solenidades daquela APL, só tiram o chapéu para o Hino Nacional.
          Observe-se que o corpo, que começa com um belo sapato, finda com um elegante chapéu. Mas, contudo, muitos têm cabeça; poucos, chapéu.  

Damião Ramos Cavalcanti