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Blog do Vavá da Luz

Entenda como uma família sueca, fundadora das Pernambucanas, era dona de quase toda uma cidade da Paraíba

A empresa era uma das fábricas do grupo Lundgren, também fundador das Casas Pernambucanas, importante rede varejista do Brasil.

Bisneto do fundador da CTRT, Frederico Lundgren, o advogado Herman Ludgren explicou ao g1 que, dada a extensão da família, a rede Pernambucanas passou para as mãos de herdeiros que agora vivem na região Sul do país, não tendo mais relação econômica com a CTRT.

Com 24.154 habitantes, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017, a cidade tem 3.913 domicílios particulares ocupados na área urbana. Desses, pelo menos 3.000 pertenciam à Companhia no início de 2022, antes das desapropriação estatal, de acordo com o advogado da empresa, Virginius Lianza.

Por isso, Rio Tinto é apelidada de “cidade privada” por seus moradores, uma vez que praticamente todos pagavam aluguel até a desapropriação. Segundo Lianza, a taxa de paga pelas famílias é de “baixo valor”, chegando a custar R$ 80.

De acordo com o documento de desapropriação, os critérios para distribuição das casas são: 1) residir há, pelo menos, 5 anos em Rio Tinto; 2) não possuir imóvel próprio e se encontrar em moradia de aluguel na data do decreto; 3) receber até três salários mínimos de renda; 4) por fim, estar assentada em áreas exclusivamente residenciais.

Ainda envolvendo as mais de 3 mil residências, tramita na Justiça, segundo o Ministério Público Federal (MPF), um processo que envolve os Lundgren e os indígenas Potiguara da região, que reivindicam a posse de 2 mil moradias, localizadas na “Vila Regina”. Enquanto o processo tramita, a CTRT não recebe aluguéis desses imóveis, fazendo com que apenas aproximadamente 300 estejam rentáveis para a companhia atualmente.

Rua Superior, uma das ruas que possuem casas que foram beneficiadas com a compra por parte do governo do estado da Paraíba — Foto: Joaquim Neto

Mesmo com a desapropriação, os Ludgreen ainda são proprietários da maioria dos imóveis da cidade, já que as 2 mil propriedades reivindicadas pelos indígenas ainda estão sob posse da companhia. No entanto, o advogado Virginius Lianza afirma que esse desequilíbrio chegou à normalidade após a venda ao estado da Paraíba, “pois existem outros tantos loteamentos e condomínios construídos nos últimos 3 anos”, diz Lianza.

Com a fábrica desativada definitivamente nos anos 1990, atualmente a empresa sobrevive justamente através do setor imobiliário.

Como a família sueca chegou ao Litoral Norte da Paraíba?

Estátua do coronel Frederico Lundgreen, um dos fundadores da fábrica — Foto: Joaquim Neto

Os Lundgren costumam ser referenciados como fundadores de Rio Tinto, pois a fundação da cidade se deu a partir da instalação da Companhia de Tecidos, entre 1917 a 1918. Mas antes de chegarem lá, as terras eram ocupadas por indígenas Potiguara do aldeamento de Monte-Mór, atualmente ‘Vila Regina’, cujos moradores disputam na Justiça a posse dos imóveis. Na época, as terras foram vendidas pelo coronel Alberto César de Albuquerque por 23 contos de réis.

Conforme explica a antropóloga Marianna de Queiroz, autora do estudo “A Família Lundgren e a fundação da cidade de Rio Tinto”, os suecos tiveram muitos privilégios, como a boa localização das terras, que possuíam portos naturais. Além disso, o Estado beneficiou a família com uma isenção fiscal de 25 anos.

A Companhia adquiriu cerca de 660 km² de terras e, em 1917, iniciou seus trabalhos de drenagem e canalização das águas no local de instalações da fábrica e a criação de uma olaria para a produção dos chamados ‘tijolos aparentes’, o que explica o fato de Rio Tinto possuir um “padrão estético”, no qual a maioria das edificações da cidade são feitas de “tijolinhos vermelhos” (confira imagem abaixo).

A maioria dos imóveis em Rio Tinto possuem o padrão estético dos tijolos vermelhos. — Foto: Joaquim Neto

As casas foram construídas para que os operários tivessem onde ficar na cidade ao virem trabalhar na fábrica. Os imóveis eram “emprestados” aos trabalhadores, que pagavam uma quantia para residir no local. Hospitais, farmácias e diversos outros serviços também foram construídos. Dessa forma, o dinheiro recebido pelos trabalhadores circulava de volta à Companhia. Com a desativação da fábrica, o valor do aluguel continuou sendo pago pelos moradores que permaneceram no local.

“Famílias inteiras foram aliciadas pelos agentes da companhia, iludidas com promessas de melhorias da qualidade de vida, quando chegavam à Rio Tinto eram amontoadas em galpões até que fossem construídas as casas, que variavam de acordo com o número de trabalhadores da fábrica e com o cargo exercido”, diz a pesquisa de Marianna Queiroz.

“Havia diferentes tipos de casa para as variadas funções na fábrica. As casas e chalés localizados nas principais ruas da cidade eram maiores e ocupados por diretores e chefes de setores. As casas dos trabalhadores que se localizavam no entorno eram menores”.

Casas construídas pela Companhia de Tecidos Rio Tinto (CTRT) para operários, na Rua da Linha. — Foto: Joaquim Neto

Considerada, na época, uma das maiores da América Latina, a fábrica chegou a possuir 18 mil funcionários. Os Lundgren “optaram pela procura de terras distantes de cidades movimentadas e, consequentemente longe da atuação de movimentos sindicais, ameaçadores de seu domínio e controle sobre a mão-de-obra”, diz a antropóloga em seu estudo.

A partir desse momento, os Lundgren passam a atrair mão de obra, empregando muitos indígenas da etnia Potiguara na implantação de roçados e na abertura e conservação de estradas. “Os indígenas que ficaram vivendo sob o domínio dos Lundgren relatam uma época de intenso trabalho na fábrica, nas lavouras e no corte de madeira”.

“Muitos Potiguara relatam que quando uma família se recusava a entregar suas terras para os Lundgren tinham suas casas atacadas e destruídas pelos ‘capangas’ do Coronel Frederico durante a noite impossibilitando a fuga. Muitos indígenas tinham medo de se aproximar de suas famílias para não serem pegos. Devido a esse fato muitos optaram pela dispersão ao migrarem para outras aldeias ou cidades do entorno”, aponta o estudo.

A fábrica começou a entrar em declínio no fim da década de 1960 Entre as causas, a antropóloga destaca que o mercado foi se tornando mais competitivo e as transformações tecnológicas ocorridas nas indústrias da região Sudeste do país provocaram uma crise na fábrica. Outros fatores foram apontados, como os problemas jurídicos envolvendo questões de herança. Todo o processo de decadência e desentendimento familiares se estendeu até 1990, quando a Companhia de Tecidos Rio Tinto fechou definitivamente suas portas.

Hoje a fábrica encontra-se desativada e nas antigas instalações funciona a Policlínica Rio Tinto, uma pequena fábrica de toalhas e um campus da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Os trabalhadores que não tiveram condições de sair da cidade, muitos deles indígenas que moravam na região quando foram ‘empregados’, continuaram a pagar aluguel, e assim diversas outras gerações durante mais de um século, até agora.

Campus da UFPB localizada em antiga fábrica da Companhia de Tecidos de Rio Tinto — Foto: Joaquim Neto

Movimento “Liberta Rio Tinto”

Cidadãos de Rio Tinto se reúnem na frente da casa de uma família que estava com ordem de despejo por se recusar a pagar o aluguel. — Foto: Nildo Oiteiro

O Movimento Liberta Rio Tinto foi fundamental para que a ação de desapropriação acontecesse. A organização surgiu como uma forma de lutar contra ações de despejo movidas pela Companhia de Tecidos de Rio Tinto. Nildo Oiteiro, liderança comunitária, explica que tudo começou quando famílias, residentes na comunidade tradicional quilombola ‘Oiteiro’, receberam uma ordem de despejo das casas onde moram há várias gerações.

A partir disso, criou-se o movimento “Oiteiro Resiste”, que lutou na Justiça pela posse das casas e foi vitorioso em 2017. “Quando a gente ganhou a liminar na Justiça, a gente criou o Movimento Liberta Rio Tinto, a partir das reuniões em Oiteiro. Justamente levando essa ideia de força de que se oito famílias conseguiram vencer, a gente entendia que a cidade também tinha que se movimentar e lutar pelos direitos dela”, diz a liderança comunitária.

“Boa parte da cidade entende que essas casas são suas, pois fizeram manutenções ao longo dos anos. Quando a fábrica faliu, eles não receberam direitos trabalhistas. As pessoas querem liberdade, mas não podem fazer nada com as casas porque ainda são legalmente da Companhia”, diz a liderança, que enxerga a desapropriação como motivo de comemoração.

“A liberação dessas setecentas casas é graças justamente a esse movimento”, diz Nildo Oiteiro.

Os moradores comemoram: ‘a maior felicidade’

Niedja Maurício, de 51 anos, é “inquilina” há 31 anos. Antes dela, a família já pagava aluguel por mais 30 anos. A moradora destacou que o decreto de desapropriação é “a maior felicidade do mundo” e crê que a data de 24 de março será feriado no município nos próximos anos. Acrescentou que seus pais e avós trabalharam na fábrica dos Lundgren e “eram humilhados”.

A comerciante Maria da Glória Nascimento,, de 60 anos, também comemora. “Quando chegamos nessa casa, minha filha tinha um ano, hoje ela tem 36 anos. Conseguir essa casa é um sonho realizado. Teve tantos que morreram e não conseguiram realizar esse sonho, como o meu pai, que morou muito tempo mesmo, mas não conseguiu ser dono do seu imóvel. Faleceu pagando aluguel. Hoje a gente tem fé que a gente consegue ser dono da casa”.

Dona Gloria e o esposo vão finalmente se tornar donos da casa que moram há 37 anos — Foto: Arquivo pessoal

No momento, a Companhia Estadual Habitação Popular (Cehap) está realizando o levantamento das 700 famílias que se enquadrem nos critérios de moradia pré-definidos para distribuir as casas. Os critérios são: residir há, pelo menos, 5 anos em Rio Tinto; não possuir imóvel próprio e se encontrar em moradia de aluguel na data do decreto; receber até três salários mínimos de renda; e, por fim, estar assentada em áreas exclusivamente residenciais.

Segundo o Ministério Público Federal (MPF), a desapropriação dos 700 imóveis era negociada desde 2014. Na época, o então procurador regional dos Direitos do Cidadão, José Godoy, foi informado pela Cehap que as moradias no município pertenciam quase que exclusivamente a uma pessoa jurídica, violando direitos humanos, como o direito à moradia.

Segundo informações do MPF, para isso, o estado da Paraíba solicitou recursos ao Governo Federal, que negou o pedido diversas vezes. Diante da negativa, o governador da Paraíba, João Azevêdo (PSB), usou recursos próprios do estado para a negociação milionária.

Situação atual da empresa

Vista ampla de Rio Tinto à noite — Foto: Joaquim Neto

Atualmente, a Companhia de Tecidos Rio Tinto S/A atua no setor imobiliário, a partir do gerenciamento desses bens que estão espalhados por alguns locais do Brasil. A empresa possui ações de diversos grupos, já não apenas de seus fundadores. Desde 2017, seu plano de gestão é negociar para que os moradores de Rio Tinto adquiram os imóveis que ainda estão sob posse da Companhia, sem que a empresa comprometa o funcionamento de suas atividades.

Essa atual política da associação vem realizando a venda de casas para muitas famílias da cidade paraibana. Segundo o advogado da companhia, Virginius Lianza, a negociação com o governo do estado diz respeito a contemplar a parcela da população que não possui condições financeiras para realizar a compra dos imóveis.Ainda segundo o advogado, o projeto da empresa é “continuar a negociação para beneficiar toda a sociedade de Rio Tinto”.

Campus da UFPB em Rio Tinto, no Litoral Norte da Paraíba — Foto: TV Cabo Branco/Reprodução

Reproduzido PalavraPB