Sob o aspecto jurídico, a prisão de João de Deus (ou do “capeta”) é uma das mais absurdas decisões da justiça brasileira em toda sua história
17/12/2018 às 12:42
Estupro, violação sexual mediante fraude, importunação sexual, assédio sexual, sedução, estupro de vulnerável e outros crimes contra a liberdade sexual, todos, para serem apurados e o infrator condenado, necessitavam, obrigatoriamente, da formalização de queixa (ou representação) do ofendido.
Era a chamada ação penal condicionada, conforme estabeleceu o Código Penal de 1940. Dependia, portanto, da iniciativa da parte ofendida (ou de seu representante legal, se fosse vítima menor de idade) para apresentar queixa, sem a qual nenhuma investigação seria aberta para que o crime fosse apurado.
E havia prazo exíguo para que a parte ofendida se queixasse à autoridade: 6 meses, contados do dia em que o autor do crime foi identificado.
Se a queixa ou representação não fosse apresentada nos 6 meses, ocorria o fenômeno da decadência. Ou seja, a perda do direito de se queixar. E o crime desapareceria. Não poderia mais ser investigado.
“O ofendido decai do direito de queixa ou representação se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que veio saber quem é o autor do crime…” (artigo 103 do Código Penal).
Até que foi editada a Lei nº 13.718, de 25.9.2018, e neste mesmo dia entrou em vigor. Há menos de três meses, portanto.Esta lei acabou com a ação penal privada para os crimes contra a liberdade sexual, contra menores e maiores de idade, e os tornou, todos, crimes de ação pública incondicionada.
Portanto, desde 25 de Setembro deste ano de 2018, autoridade que tomar conhecimento da prática de crime contra a liberdade sexual e outros do mesmo gênero, é obrigada a agir de ofício, como age no caso de homicídio, para citar apenas um exemplo.
A ação da autoridade não depende mais de queixa ou representação da parte ofendida.
Mas que fique esclarecido que a lei só vale para os crimes contra a liberdade sexual cometidos a partir da vigência da lei, isto é, 25 de Setembro de 2018. Os que foram praticados antes e não foram objeto de queixa nos seis meses seguintes, todos estão cobertos pela decadência. A vítima não pode mais agir contra o ofensor. Decaiu do direito de queixa.
Não se tem notícia que dos relatos que as ditas 335 mulheres fizeram contra o médium João de Deus (relatos até por telefone!, por e-mail! e alguns perante a policia e agentes do Ministério Público), algum ou alguns deles tenha ocorrido após 25 de Setembro de 2018, quando os apontados crimes se tornaram de ação pública incondicionada e deixaram de ser de ação privada, que exigia queixa no prazo de seis meses.
Há relatos de atos libidinosos e outros mais graves que João de Deus teria praticado há 10, 20, 30 anos!.
Só agora é que as que se dizem vítimas (seriam 335 mulheres!) aparecem para acusar o médium. Mesmo assim, cientes de que os relatos são desacompanhados de prova, feitos só recentemente e não estão amparados pela Lei 13.718 de 25.9.2018; cientes de que as mulheres (quiçá as 335!) decaíram do direito de queixa, em razão dos anos e anos decorridos e os eventuais crimes não podem ser mais investigados (salvo os cometidos após 25 de setembro de 2018) porque cobertos pela decadência do direito de queixa e cientes de que há penas prescritas (quiçá no tocante as 335 vítimas!), mesmo assim a Justiça decretou a prisão de João de Deus!.Prendeu-se para investigar depois. E sem que João de Deus fosse ouvido antes. Sem direito de defesa. Sem que seus advogados tivessem acesso aos relatos das ditas 335 mulheres!
Ora, ora, é investigação estéril, seca, árida, que não produzirá efeito ou fruto algum, por causa do tempo (anos e anos) decorrido. Ou será que a queixa de uma mulher que se disse violentada por João de Deus anos atrás vai ser investigada porque só agora, passados muitíssimo mais de seis meses do alegado crime, a mulher se queixou à polícia ou à promotoria pública?. É óbvio que tanto não poderá ocorrer, porque na época do alegado crime a investigação e instauração de processo contra João de Deus dependia de queixa da vítima. A ação penal era condicionada à queixa. E queixa no prazo de seis meses a contar do alegado ato criminoso. E tanto não aconteceu.
A prisão de João de Deus é uma das mais absurdas decisões que a Justiça deste país tomou em toda a sua história republicana e democrática. É ato de força. É ato de tirania. É ato de absoluta inconsistência legal e humanitária, visto que nenhum dos motivos ensejadores da prisão preventiva estavam – e nem continuam a estar – presente e ocorrendo para a sua decretação. Vá fundo eminente colega doutor Alberto Toron, notável criminalista. Dê entrada imediatamente no Habeas-Corpus junto ao Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, e obtenha liminar para que João de Deus deixe a prisão.
Registra-se que a análise que se faz neste breve artigo é meramente técnica. Coloca-se o rumoroso caso sob a ótica da lei. Nada mais.
De resto, a ser verdade mesmo o que as mulheres contam, e ainda que as penas estejam prescritas e as vítimas decaíram do direito de queixa, este João não é de Deus, mas é do “capeta”. Um capeta que vai se beneficiar desta sutil questão entre ação penal de iniciativa privada e a novidade da ação penal pública para os crimes sexuais, mas que só vale, repita-se, para os crimes cometidos a contar de 25 de Setembro de 2018.Os alegados crimes que o “capeta” teria cometido antes (e quanto mais antes, melhor para o “diabo”), aqueles estão mortos e sepultados no inferno. Não podem mais ser ressuscitados a fim de serem investigados e o agente ofensor processado e julgado.
Jorge Béja
Advogado no Rio de Janeiro e especialista em Responsabilidade Civil, Pública e Privada (UFRJ e Universidade de Paris, Sorbonne). Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)