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CLUBE DA HISTORIA EM : Mantenham-nos vivos

 

clubeQuando, em 1989, decidi tirar uma licença sabática, alguns amigos vieram ter comigo e disseram-me: — Normalmente tira-se uma licença dessas para se fazer qualquer coisa de diferente, certo? — É verdade, — respondi à cautela, enquanto especulava sobre o que os teria feito dizer aquilo. — Estamos a lançar um novo projeto no Sri Lanka e gostávamos de poder contar contigo para integrar a nossa primeira equipa. No Sri Lanka, explicaram, estava-se a assistir ao assassínio de advogados destemidos por aceitarem casos de direitos humanos.

Pequenos grupos de homens armados ameaçavam advogados que defendiam as liberdades civis num país onde a repressão governamental crescia. — O que esperam que eu faça? — inquiri. — Estamos a formar um grupo de pessoas de vários países para ir para o Sri Lanka. O objetivo é que esse grupo acompanhe os advogados ameaçados, dando-lhes proteção. Uma espécie de guarda-costas desarmados. Bom, ali estava uma proposta realmente diferente! Sabia muito pouco sobre o Sri Lanka a não ser que se tratava de uma nação situada numa ilha fabulosa a sul da Índia e que, desde há vários anos, se via a braços com uma guerra civil sangrenta. Sabia que milhares de pessoas tinham morrido mas não sabia que havia milícias com ligações ao exército a aterrorizar ativistas dos direitos humanos. Estava-se em 1989 e não se vislumbrava o fim das hostilidades. Como seria possível encontrar-se uma saída para um país que aniquilava cidadãos empenhados na defesa dos direitos humanos e da democracia? Decidi ir.

Um outro amigo, na verdade um advogado especializado em liberdades civis e cuja compreensão e apoio eram para mim um dado adquirido, pôs em causa a minha decisão. — Esta é uma missão suicida, George. — insistia David. — O que te leva a crer que aqueles criminosos hesitariam em te matar juntamente com aqueles que supostamente estarias a proteger? — Porque iriam criar um incidente internacional. — retorqui. — Uma coisa é matar um ativista cingalês; outra bem diferente é matar um americano ou um europeu. Os outros elementos da equipa são da Inglaterra e de Espanha. As milícias são controladas pelo governo e o governo não está interessado em criar problemas com a comunidade internacional.

O Sri Lanka depende da ajuda externa e não quereria ficar mal visto perante os países democráticos. — Bom, — disse David — deixa-me ao menos comprar-te uma arma para poderes proteger-te. — Mas trata-se de uma iniciativa não-violenta, — protestei. — A equipa é da responsabilidade das Brigadas Internacionais de Paz (PBI) e o que eles defendem é que os guarda-costas não poderão, em circunstância alguma, fazer uso de violência. O meu amigo continuava cético. — Em que outros locais é que foram levadas a cabo iniciativas do género? — Em El Salvador e na Guatemala, — e sabes bem de que tipo de governos é que estou a falar! Têm matado muito mais cidadãos do que no Sri Lanka. Mas as PBI têm vindo a desenvolver o seu trabalho de acompanhamento já há muitos anos e tem resultado: têm sido poupadas muitas vidas, nomeadamente as de mães de ativistas desaparecidos. — E ninguém das BPI foi morto? — perguntou David, ainda cético. — Dois foram esfaqueados e a casa onde desenvolviam o projeto foi bombardeada, mas ninguém morreu. — Bom, — disse David sem desistir — se não queres levar armas, vou arranjar-te um colete à prova de bala. Tens de ter qualquer coisa. — Mas eu já tenho essa ‘qualquer coisa’, David: tenho a minha vulnerabilidade.

Lembras-te do que aprendemos sobre o movimento dos direitos civis? Por vezes, é precisamente na nossa vulnerabilidade que reside o nosso poder. Mas é verdade, — admiti — que não podemos saber com certeza absoluta se o acompanhamento de proteção irá resultar no Sri Lanka. É um terreno onde as PBI estão a entrar pela primeira vez. De qualquer modo, decidi juntar-me à equipa e vou tentar. Talvez tenha demonstrado ao David uma confiança que, na verdade, não sentia porque, durante a viagem de avião rumo ao Sri Lanka, transpirei imenso. Nunca na minha vida tinha feito uma coisa assim tão difícil. Do que não me apercebi no avião foi de que esta missão era em tudo semelhante a qualquer outra — alternando estados de euforia e de tédio. Fundamental mesmo era viver um dia de cada vez, passo a passo.

O nosso primeiro advogado vivia em Colombo, a capital do Sri Lanka. Levava uma vida clandestina, dormindo em casas diferentes todas as noites para conseguir sobreviver. O seu problema residia no facto de não conseguir encontrar-se com os seus clientes, uma vez que o seu escritório ficava numa zona pouco segura da cidade. Os meus colegas de equipa e eu passámos horas e horas na sala de espera enquanto ele estava no escritório. Assim, se os homens armados chegassem para o levar, viam-nos a nós primeiro. Admireilhe a coragem e a de outros que, como ele, poderiam ter escolhido a segurança do exílio mas que tinham preferido ficar e lutar pela democracia.

O nosso segundo advogado vivia em Kandy, uma cidade mais pequena em cujo centro se concentravam os escritórios de advogados. Os advogados assassinados em Kandy eram atacados nas suas próprias casas. Após o recolher obrigatório, alguém lhes tocava à campainha. O advogado, julgando tratar-se de algum parente em busca de apoio para algum filho que tivesse sido detido, dirigia-se à porta e era abatido ali mesmo. A minha função: dormir em casa do advogado e ir abrir a porta se alguém tocasse depois do recolher obrigatório. Embora o meu compromisso com a equipa fosse de 3 meses, as PBI permaneceram no Sri Lanka durante décadas, acompanhando advogados, sindicalistas, monges e outros ativistas de direitos humanos. E embora as milícias continuassem ativas, nenhum dos ativistas ameaçados que as PBI protegeram foi morto. As PBI prosseguiram o seu trabalho e foram nomeadas para o Prémio Nobel da Paz. E ainda guardo recordações preciosas desse tempo em que ajudei a manter vivas algumas das pessoas mais corajosas que já conheci.

 

George Lakey