“Geralmente temos um pico de procura quando as pessoas leem matérias que expõem o que é dependência sexual, como o caso do Michael Douglas (ator norte-americano que confessou ser viciado em sexo e se submeteu a tratamento). A diferença entre a dependência química e a de comportamento é que esse conceito não é tão definido. As pessoas nem sempre se dão conta de que há um problema”, diz Aderbal Vieira Junior, psiquiatra e responsável pelo setor de tratamento de dependências de comportamentos doProad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes), da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Além dos escândalos que já envolveram astros como Douglas, o também ator David Duchovny e o golfista Tiger Woods, filmes também ajudam a trazer luz sobre o vício por sexo e suas consequências. Há dois anos, esse papel coube a “Shame”, dirigido por Steve McQueen e estrelado por Michael Fassbender, que vive um sujeito, Brandon, bem sucedido, mas cheio de compulsões sexuais que lentamente o levam para o fundo do poço.
Apesar de “Ninfomaníaca”, novo – e polêmico – trabalho de Lars von Trier, ser dividido em duas partes e a primeira, em cartaz a partir de hoje no Brasil, seja considerada cômica e menos sombria do que a segunda, prevista para estrear este ano, a personagem central, Joe (Charlotte Gainsbourg), sofre das mesmas angústias e chega a repetir em alguns momentos que é “um ser humano horrível”.
HOMENS SÃO MAIS DEPENDENTES?
“Shame” e “Ninfomaníaca” são protagonizados por atores de sexos opostos, mas, de acordo com Aderbal, um levantamento feito pelo Proad dentro dos casos atendidos mostrou que 95% dos dependentes são do sexo masculino. “Eu ficaria muito surpreso se isso não se refletisse na população, as mulheres tendem a ser mais dependentes amorosas”, comenta. O psiquiatra diz ainda que o mapeamento realizado por eles indica que a maioria dos pacientes procurou ajuda por volta dos 34 anos e que boa parte deles é instruída: “Já vi salas onde metade era graduada e a outra metade era pós-graduada, tinha gente com mais escolaridade do que eu”.
Na opinião de “Rico“, espécie de porta-voz do Dasa (Dependentes de Amor e Sexo Anônimos), há um número maior de homens atendidos porque a mulher ainda não tem liberdade e coragem para se assumir. “Na nossa sociedade machista, mesmo o cara que vai pedir ajuda, ele é o tal porque pega todo mundo, já a mulher tem que assinar embaixo uma outra história, que é complicada.” No caso do Dasa, ele afirma que os grupos dos encontros são bem divididos entre homens e mulheres por conta do anonimato: “As pessoas sabem disso e vão lá por isso”.
“É ROLETA RUSSA”
O início de tudo para Guilherme*, hoje com 44 anos, foi o término de dois relacionamentos quando ainda era adolescente, nos anos 90. Da “pele para fora”, como diz, sua vida era normal: ia para a faculdade e seguia estudando. Da “pele para dentro” era dor e solidão. Ao perceber que havia algo de errado, o engenheiro lembra que não conseguia manter uma relação saudável com ninguém e tinha um sentimento de anorexia no sentido de que sofria de uma “compulsão do não”: “Digo ‘não’ para ser feliz, digo ‘não’ para ter uma sexualidade saudável”.
A “anestesia” para isso veio por meio do sexo, como a masturbação compulsiva e relações sexuais com diversas pessoas em um curto espaço de tempo. Para se anestesiar da “culpa e vergonha” que vinha horas depois ou no dia seguinte, Guilherme lembra que a solução era repetir tudo de novo: “Aí é roleta russa. Chega uma hora que fazer a mesma coisa já não dá mais barato, você se acostumou. Quanto maior o risco, maior o barato”. Ele revela ter ouvido histórias de pessoas que abandonaram o trabalho, foram demitidas, contraíram DSTs, acabaram na delegacia. Alguns – e ele também – chegaram a frequentar um local religioso, em vão. “Você passa um período ‘limpinho’, mas uma hora você volta. É que nem pavio de vela, volta a queimar de onde parou.”
Em busca de ajuda, ele frequentou as reuniões do Dasa dos 18 aos 23 anos. O engenheiro se diz livre e distante dos antigos padrões há muito tempo. “Consegui desenvolver todas as áreas da minha vida de forma saudável. Tenho uma vida financeira legal, sou executivo, completei 18 anos de casamento. Acho que, mais importante, meu relacionamento comigo, com minhas dores, foram resolvidas. Salvou minha vida.”
REUNIÃO
O iG acompanhou uma reunião de dependentes anônimos e observou alguns dos pontos destacados pelo psiquiatra. Das nove pessoas presentes ao encontro, promovido semanalmente, todos aparentavam ter passado dos 30 e poucos anos e sete delas eram homens. Assim como em encontros de outros tipos de dependências, a disposição das carteiras de aspecto escolar, daquelas com apoio apenas para o braço direito, é em forma de círculo, de forma que seja possível ver os rostos de todos.
Quem chega é bem vindo, e logo se percebe que alguns já frequentam a reunião há um bom tempo e se conhecem dali, enquanto para outros é a primeira vez. Ninguém é obrigado a falar, mas quando falam, seguem o protocolo de se apresentar – mesmo quando são ouvidos pela segunda, terceira, quarta vez –, ao que todos respondem, e ao final de cada fala dizem “24 horas de abstinência” ou expressão similar.
Depoimentos são trocados, e a impressão é a de que por mais que não seja a primeira reunião da maioria, os dependentes conversam sobre experiências do passado com a ideia de passar aos recém-chegados a sensação de que ninguém ali está sozinho. Estão todos juntos no mesmo barco, alertando uns aos outros sobre os perigos do vício em si, das dificuldades de não sofrerem uma “recaída” e de agir, muitas vezes, contra o que desejam. E talvez mais importante do que falar, é ser ouvido.
VIDA SEXUAL MUITO ATIVA x COMPULSÃO SEXUAL
Uma das dúvidas mais recorrentes, segundo três especialistas consultados, é a confusão entre ter – ou desejar ter – uma vida sexual muito ativa e uma compulsão sexual incontrolável. “Tem que ter muito cuidado quando fala em viciado em sexo porque muitas pessoas classificadas como viciadas têm, na verdade, um apetite maior que a média. Não quer dizer que sejam viciadas”, diz Sandra Lima Vasques, psicóloga e consultora há mais de 20 anos do Instituto Kaplan, voltado para o tratamento terapêutico de dificuldades de cunho sexual entre a população carente.
“Tem gente que confunde porque quer sexo todo dia ou porque tem uma frequência alta, de três a quatro vezes por semana. Não tem nada a ver. Compulsão é gastar mais de 12 horas por dia procurando coisas relacionadas a sexo, é gastar o que ganha em sexo, é parar o que está fazendo para se masturbar, é uma vida voltada ao sexo”, explica CarlaCecarello, psicóloga e coordenadora do Projeto AmbSex. “A questão não é de frequência, é de qualidade”, completa Aderbal.
E quando o comportamento passa a ser um “sintoma” do vício por sexo? Aderbal, Sandra e Carla são unânimes: quando há um “prejuízo”. Para o psiquiatra, existem três fatores que ajudam a identificar tal comportamento. Em primeiro lugar, o usuário sente que está perdendo seu poder de escolha, age não quando quer, mas porque “alguma força dentro dele o impele a fazer aquilo”; em segundo, há o prejuízo nas relações afetivas, no trabalho; e, por último, ocorre o “empobrecimento” da pessoa, o sexo não enriquece sua “experiência vivencial”.
“[Essas pessoas] acabam sofrendo um prejuízo. Colocam o sexo acima de tudo, dar uma escapada uma vez ou outra do relacionamento é uma coisa, mas se você faz isso todos os dias, é muito provável que seu par descubra. Você corre um risco desnecessário de vida, acaba no meio de um lugar em que habitualmente não iria. Elas não conseguem ter limite. Precisam de ajuda”, conta Carla. Em “Shame”, por exemplo, em seu surto final, Brandon, que durante a maior parte do filme dá a entender que é heterossexual, vai para uma casa noturna GLS, onde se envolve com outro homem.
Carla observa ainda que outras compulsões, por apostas, comida, gasto excessivo de dinheiro, alcoolismo e drogas, podem servir de ponte para o vício pelo sexo. Aderbal concorda: “Existe um ditado na psiquiatria que diz que o principal fator para você ter uma doença psiquiátrica é ter outra, quem tem uma está mais predisposto a ter uma segunda, quem tem duas, pode ter uma terceira, e assim por diante. É mais frequente em casos de depressão, ansiedade, mas não é regra”.
TRATAMENTO
Quando se fala em vício ou compulsão sexual, se fala em tratamento, mas não em cura. Os mais comuns são terapia com acompanhamento profissional, grupos anônimos e medicação, este último aplicado em duas circunstâncias, afirma Aderbal Vieira. “Quando a pessoa tem outro problema, quando está deprimida, o tratamento é farmacológico. Em casos muito raros, quando o paciente está subindo pelas paredes, está muito descontrolado, posso usar a medicação para sintomaticamente reduzir sua libido, dar uma medicação que tem esse efeito colateral.”
No entanto, há muita pesquisa a ser feita. Aderbal informa que o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), referência para psicólogos e psiquiatras, já possui uma categoria voltada para o impulso sexual, mas “ainda não existe uma solidez suficiente sobre quais critérios serão adotados para ser impulso”.
“Rico” defende que o vício por sexo seja encarado como o consumo excessivo do álcool. “A humanidade enxerga o alcoolismo como doença e trata de outra forma. A gente espera que façam o mesmo com o sexo. Um dia as pessoas vão levantar a bandeira amarela antes de destruírem suas vidas completamente”, diz o porta-voz do Dasa.
* O nome foi alterado a pedido do entrevistado.