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CLUBE DA HISTORIA EM : A pequena vela das histórias

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Introdução

Nos primeiros anos da Grande Depressão (1929-935), muitos porto-riquenhos deixaram a sua pequena ilha em busca de trabalho e oportunidades na grande cidade de Nova Iorque. Muitos deles estabeleceram-se a norte de Manhattan, numa zona que passou a chamar-se O Bairro. Para a gente de O Bairro, os invernos eram duros, pois era a época em que mais sentiam a falta do calor tropical da sua ilha. Mas, um dia, algo de maravilhoso aconteceu… A senhora Pura Belpré, grande contadora de histórias e a primeira porto-riquenha a trabalhar como bibliotecária na Biblioteca Pública de Nova Iorque, começou a trazer às crianças de O Bairro, o calor e a beleza de Porto Rico, através de contos e de livros.

Lucía González

 

Hildamar e o seu primo Santiago tiritavam de frio no regresso da escola. Um vento frio gelavalhes as mãos e fustigava-lhes a cara. Era a última semana de aulas antes das férias de inverno. E era também o primeiro Natal de Hildamar em Nova Iorque! Quando o inverno chegou a Nova Iorque, Hildamar tinha ficado admirada. Nunca tinha sentido tanto frio! Deixara Porto Rico só há alguns meses e viera com a família para Nova Iorque, num grande barco a vapor chamado El Ponce.

A viagem demorou cinco dias. O sol de verão estava agora muito longe de O Bairro. Hildamar e Santiago apressaram-se a chegar a casa, a fim de aquecerem as mãos no velho fogão de ferro. Nessa noite, a família reuniu-se para jantarem juntos. — Meu Deus! — suspirou a mãe Nelinha. — Quem me dera aquelas noites quentinhas de Dezembro na nossa ilha! — Ah! — exclamou o tio Pedro, pai de Santiago. — O que me faz mais falta são os pastéis e aquele cheirinho a leitão assado por todo o lado! — Lembro-me da festa e dos presentes, quando a família e os vizinhos nos vinham visitar.

Cantava-se, havia baile e comia-se! — disse a Tia Maria, mãe de Santiago, fechando os olhos e trauteando uma melodia. — O melhor dia do ano era o Dia de Reis! — acrescentou Santiago. — E os Reis vêm a Nova Iorque? — perguntou Hildamar. — Vão vir este ano? No dia seguinte, como todos os dias, a caminho da escola, Hildamar, Santiago e a Tia Maria passaram diante de um grande edifício com janelas, que parecia convidar a entrar quem passava.

Era um edifício diferente dos outros edifícios de andares escuros, que se estendiam de uma esquina à outra de cada rua. — Tia Maria, o que há lá dentro? — perguntou Hildamar. — Podemos entrar? — Isto é a biblioteca — respondeu a Tia Maria — e as bibliotecas não são para crianças barulhentas como vós. — É só para gente grande como tu? — perguntou Santiago. — Nós não falamos inglês e lá ninguém fala espanhol — disse a tia. Esta era a razão por que nunca lá entravam.

Mas, nessa mesma tarde, uma convidada muito especial veio à aula de Hildamar e de Santiago. Era uma senhora alta e magra, cujos olhos escuros brilhavam como estrelas na noite. Ao falar, as suas mãos moviam-se como as asas de um pássaro em pleno voo. — Bom dia! — disse. — Chamo-me Pura Belpré e venho da biblioteca pública. Trago histórias e marionetes para partilhar convosco. Usando as marionetes, a Senhora Belpré contou-lhes histórias em inglês e em espanhol.

Todos se riram com a história do João Bobo a perseguir um caldeirão de três pernas. No final, a senhora Belpré convidou todas as crianças a visitar a biblioteca nas férias de Natal. — A biblioteca é para todos — disse ela. Hildamar estava ansiosa por chegar a casa e dar a boa notícia a todo O Bairro.

Nesse dia, quando a Tia Maria foi buscar as crianças à escola, estas contaram-lhe tudo a respeito da convidada especial, das histórias, das marionetes e da biblioteca. — Na biblioteca falam espanhol! — exclamou Hildamar. — Podemos ir hoje à biblioteca? — pediu Santiago. — Espanhol? Na biblioteca? Hoje não, que estou muito ocupada — respondeu a Tia Maria. — Mas prometo que os levo um dia destes. Hildamar disse: — Queria que a minha mãe também viesse, mas ela está sempre a trabalhar! — Se calhar, no sábado podemos ir todos — sugeriu a Tia Maria. — Que bom! — aplaudiram Hildamar e Santiago e começaram a saltar.

Saltaram até chegar à loja Santurce, onde o Senhor Ramón e a Dona Sofía vendiam feijões, legumes frescos, pão e café. — Porque é que os meninos estão tão alegres hoje? — perguntou Dona Sofía, surgindo detrás do balcão. — Que notícias trazem? — perguntou o Senhor Ramón. — Na biblioteca falam espanhol! — disse Hildamar. Os outros clientes que se encontravam na loja puseram-se a escutar com interesse o que Hildamar ia contando. — Que bom! — exclamaram. — E têm livros em espanhol? — quis saber Dona Sofía. — Bem, logo veremos! — disse o marido. No sábado, a mãe de Hildamar e a Tia Maria convidaram a Dona Sofía e o Senhor Ramón para irem com elas à biblioteca. Santiago, por sua vez, convidou o amigo Manuel.

Caminhando por ruas cobertas de neve, o grupo recordava os Natais passados no seu país e depressa chegou ao lindo edifício. Os adultos ficaram parados, a olhar as portas altas do edifício, hesitando em entrar. As crianças subiram as escadas a correr. Mal podiam esperar! A biblioteca estava cheia de crianças. A Senhora Belpré acolheu-os com um sorriso. — Bem-vindos! — disse. A pequena vela dos contos estava já acesa e a história começou: — Era uma vez em Porto Rico… A Senhora Belpré contou uma história que Hildamar e Santiago já tinham ouvido, uma que a avó lhes contara, acerca de uma carochinha espanhola chamada Martina, e do seu namorado, o Ratão Pérez. A história acabou com um mar de aplausos. — Agora fechem os olhos e peçam um desejo — sussurrou a Senhora Belpré. — Depois de apagarmos a vela, os vossos desejos realizar-se-ão.

As crianças fecharam os olhos e fizeram os seus pedidos. Depois disso, a Senhora anunciou: — O Dia de Reis já está perto. Este ano, queremos fazer uma grande festa na biblioteca, com uma peça de teatro, um baile e um desfile. A peça será a história do Ratão Peréz e da Martina. Quem quer participar na peça? Santiago ergueu a mão: — Eu quero! — Eu também quero! — gritaram as outras crianças. Santiago foi escolhido para ser o Ratão Peréz. Hildamar ergueu a mão. O seu coração começou a palpitar com força quando a Senhora Belpré a escolheu para fazer o papel mais importante da peça: o da carochinha Martina. — Atores já temos — disse a Senhora Belpré. — Mas ainda nos falta o cenário, a música e o guarda-roupa.

Depressa se espalhou a notícia: “Na biblioteca fala-se espanhol! Vão lá fazer uma festa de Reis!” A Dona Sofía contou ao Senhor Ramón, que o disse ao Padre Simón, que o anunciou na igreja. Nesse mesmo domingo, depois da missa da manhã, os vizinhos reuniram-se. Até a Senhora Pura Belpré quis estar presente. Todos queriam ajudar a celebrar o primeiro Dia de Reis em Nova Iorque! — Eu encarrego-me de fazer os fatos — disse a Tia Maria. — Eu faço as cortinas do cenário — declarou a Mãe Nenita, que trabalhava numa fábrica de costura. — E eu construirei o palco — disse o Senhor Ramón. — Em Porto Rico, era carpinteiro. A partir desse dia, os vizinhos iam à biblioteca todos os dias, para ajudar nos preparativos para o grande evento. E todos se alegraram ao descobrir que a biblioteca dispunha de revistas e livros em espanhol para eles lerem. As crianças ensaiavam a peça, as danças e as histórias. O Senhor Ramón ofereceu caixas de madeira e de cartão para a decoração do cenário.

As mulheres de O Bairro reuniam-se na igreja, ou na biblioteca, para recortar, pintar e colar. Por fim, no dia 5 de janeiro de tarde, a biblioteca ficou pronta para o Dia de Reis. No dia seguinte, vieram todos: os que viviam longe e os que viviam perto. Lá fora, a neve ia-se amontoando. Dentro da biblioteca, os troncos ardiam na lareira e a chama da pequena vela dos contos cintilava. A sala enchia-se de vozes de crianças e adultos. Falavam todos ao mesmo tempo, em inglês e em espanhol. — ¡Ay, qué lindo! How beautiful! A sala de leitura transformara-se numa ilha das Caraíbas. Enquanto um grupo de crianças entoava os cantares típicos de Natal, outras, impacientes, esperavam que a festa começasse. — É um assalto! — irromperam, com grande estrondo, as vozes dos foliões, perante a admiração de todos.

As crianças puseram-se em bicos de pés para ver melhor. — Viva, viva, viemos saudar todos! — cantavam os foliões. A Dona Sofía tocava as maracas, que faziam chiqui-chiqui-chic, chiqui-chiqui-chic. O Senhor Ramón tocava o reco-reco, cha-cra-cha-cra-cha. E, à frente do grupo, acompanhando o ritmo com a viola, lá ia o Senhor Lebrón. De repente, chegaram os três Reis Magos, que percorreram o salão inteiro, atirando rebuçados e guloseimas às crianças. Depois, a música acabou e a peça começou: — Há muitos anos, numa casinha com uma linda varanda, vivia uma carochinha chamada Martina… Hildamar entrou em cena. Era uma carochinha muito bonita. Quanto a Santiago, era um ratinho muito elegante! A Senhora Belpré concluiu o programa da forma habitual. — Fechem os olhos e peçam um desejo — murmurou, apertando entre as mãos a pequena vela dos desejos.

Hildamar fechou os olhos e formulou um desejo. Quando os abriu, os seus olhos cruzaram-se com os da Senhora Belpré. Com um sorriso suave e o olhar brilhante, esta disse: — Hoje, com a ajuda de todos, trouxemos o calor e a beleza de Porto Rico a Nova Iorque. Lembrem-se de que a biblioteca é para vocês todos. Apaguemos juntos a pequena vela dos desejos e estes realizar-se-ão. Lucía González The Storyteller’s Candle San Francisco, Children’s Book Press, 2009 (Tradução e adaptação) Pensa-se que Pura Belpré nasceu entre 1899 e 1903 na pequena aldeia de Cidra, Porto Rico. Em sua casa, todos contavam histórias. As histórias que a avó lhe contava haviam sido transmitidas oralmente, de geração em geração.

Foram essas as histórias que ela levou para os Estados Unidos no início dos anos 20. Pura Belpré foi a primeira bibliotecária porto-riquenha de Nova Iorque e iniciou a sua carreira ao serviço da Rede de Bibliotecas Públicas de Nova Iorque. Este trabalho foi a sua grande paixão, paixão essa que a acompanhou durante toda a vida. Dotada de uma voz profunda e sugestiva, foi uma grande contadora de histórias, para além de ter sido artista de marionetes e autora de lindos livros para crianças. O conto Pérez y Martina, publicado pela primeira vez em 1932, é considerado um clássico da literatura infantil.

Em 1996, foi criado o Prémio Pura Belpré para honrar os escritores e ilustradores latinos cujos livros para crianças celebrem as vivências da cultura latina. No decurso da sua longa carreira de escritora, contadora de histórias e bibliotecária, Pura Belpré tornou-se fonte de inspiração para gerações de jovens nas comunidades em que trabalhou. O seu desejo era ser como Johnny Appleseed, figura lendária dos Estados Unidos, herói de um livro que lera em Porto Rico. Tal como ele que, enquanto viveu, foi lançando sementes de maçã por todo o Oeste, também ela quis lançar as sementes das suas histórias por todo o país.