A arte de pescar Num determinado momento, dizes à floresta, ao mar, às montanhas e ao mundo “Agora sim, estou pronto. Agora vou parar e ficar à escuta.” Então, despojas-te de tudo e aguardas. Annie Dillard — Bom dia, estás…? — Sim, estou acordado — retorqui, ainda meio a dormir, fazendo jus ao nevoeiro matinal. Depois, dei uma olhadela ao relógio e exclamei com uma careta: — Oh, é tãaao cedo! Sentado na cama, estiquei-me até à caneca de café fumegante que a mão do meu filho segurava.
Bebi pequenos goles, aspirando o seu aroma quente. Pousei a caneca e perguntei-lhe: — Porque estás levantado a esta hora? “Anda daí”, gesticulou ele, com um largo sorriso. Aos três anos de idade, James já conseguia lançar sozinho um anzol em cotovelo, usando uma cana de pesca de carreto fechado. Nunca perdia a oportunidade de ir comigo à pesca e faria, sem dúvida, uma cena, se eu me aventurasse a descer sozinho até ao lago. Em geral, ir à pesca significava ir até Butler, New Jersey, onde o pequeno Lago Edenwold ainda abundava em peixes. Tínhamos uma bela canoa, que ficava amarrada a um embarcadouro flutuante no fundo do nosso quintal das traseiras, de abril a outubro.
Nesta altura do dia, John, o meu filho mais velho, começava já a mexer-se debaixo do edredão. Esticou-se e deu um empurrão ao irmão mais novo. — James — queixou-se — acordaste-me! Porque é que tens de fazer tanto barulho? Trinta minutos depois, dirigimo-nos ao estrado de madeira em frente ao nosso abrigo, envergámos calmamente as nossas roupas de pesca e calçámos botas de cano alto.
Como James tinha deixado a sua cana de pesca esticada desde a última noite de pescaria, era sempre o primeiro a estar pronto. — Até logo — disse, enquanto desaparecia por entre um grupo de jovens áceres. Os olhos de John seguiram o irmão mais novo enquanto ele se afastava através da floresta, em direção ao rio. — Lá vai ele. Só pensa nas trutas! — comentou John. — Ele não vê diferença entre trutas, percas riscadas e lúcios — respondi, rindo. — Mas consegue sempre apanhar mais peixe do que nós os dois juntos. — Mais do que qualquer pessoa! — afirmou John, com uma certa inveja na voz. James era um rapaz dotado.
Houve alturas em que era a única pessoa a apanhar truta no rio. Pescava por intuição e não apenas por capacidade. Sabia onde estavam os peixes, de que se alimentavam e a melhor maneira de se aproximar sem os assustar, mesmo que nunca tivesse pescado naquele curso de água. Era como se Deus, na Sua graça e infinita sabedoria, tivesse concedido ao meu filho um dom especial para compensar o que ele não tinha. — Pai, em que estás a pensar? — perguntou John. — Em nada de importante — respondi. Mas, como sabia que uma resposta daquelas não iria satisfazer um jovem de dezasseis anos tão perspicaz, prossegui devagar, não querendo reavivar feridas: — Estava só a pensar no que disseste sobre o dom do teu irmão.
Fui subitamente interrompido pelo som do carreto de James. Só que, desta vez, não era o som típico de alguém a fazer um lançamento. Era o som familiar do rápido recolher do fio na bobine. — Não acredito! — disse John, num tom que deixava perceber que apenas metade dele estava feliz pelo irmão. — Vamos ver — sugeri. Abrimos caminho através do pequeno resguardo de vegetação que acompanhava o rio.
James estava de pé, no meio da água, junto de uma rocha enorme. Se seguíssemos a linha de pesca laranja fluorescente, veríamos um peixe enorme a debater-se. À medida que a truta abrandava, James baixava a ponta da cana para amortecer o choque do salto do peixe. — É incrível! — exclamou John. — Olha só o tamanho daquele peixe! James estava agora a caminhar corrente abaixo, puxando lentamente a linha, enquanto se deslocava por cima das rochas viscosas das algas, sem uma única vez parecer que ia escorregar e cair.
— Pai, quero ir ver a truta — pediu John, excitado, sabendo que o irmão mais novo raramente perdia um peixe. Enquanto retomávamos o nosso caminho ao longo do rio, a truta ensaiou mais uma tímida tentativa de fuga, mas a batalha já terminara. Levando o peixe exausto até um baixio, James ajoelhou-se na água tranquila. Segurou-o delicadamente nas mãos, retirou o anzol já sem picos e começou a ajudar a truta a recuperar alguma força, apontando-lhe o nariz para a corrente e passando-lhe água fria pelas guelras, num rápido e ritmado movimento.
Foi então que um desconhecido, que aparentemente tinha estado a observar tudo por detrás de uma árvore, se aproximou de James. — Belo peixe, rapaz — ouvimos o idoso comentar, amistoso, enquanto nos acercávamos. James não se voltou para olhar. — Eu disse “Belo peixe, rapaz”! Os olhos de James estavam fixos na truta, enquanto se assegurava de que esta recebia o oxigénio necessário para a sua corrente sanguínea. — Desculpa, filho — insistiu o amável idoso, agora já com uma certa irritabilidade na voz. — Apenas queria cumprimentar-te pela forma como lidaste com esse peixe.
Nunca tinha visto alguém a dominar uma situação como esta. Parecias o dono do rio… Mas James continuou a ignorá-lo. Enquanto nos aproximávamos do meu filho e do desconhecido, o barulho causado pela fricção das nossas botas denunciou a nossa presença. O desconhecido voltou-se para olhar na nossa direção. — Ele é surdo — disse eu, inexpressivamente, aproveitando a deixa para iniciar a habitual conversa mantida milhares de vezes com inúmeros desconhecidos. — E não são todos, nestas idades? — retorquiu logo o velhote, obviamente ferido nos seus sentimentos. — Adolescentes sem respeito pelos mais velhos! — O senhor não está a perceber.
O que eu quero dizer é que ele é surdo, profundamente surdo. Não consegue ouvi-lo a si nem a nada. O corpo do velhote como que estremeceu com esta revelação. — Tenho muita pena — balbuciou. — Perdoe-me, não sabia. Nesse momento, entrámos no campo de visão de James, que olhou para cima e, tirando uma mão da truta, disse, por gestos, “enorme”. Depois, abanou a mesma mão num movimento familiar, que simplesmente queria dizer “Ena!” Eu apontei para o desconhecido atrás dele e James olhou rapidamente, de relance, por cima do ombro.
Soltando o peixe, saiu da água para se juntar a nós na margem do rio e perguntou, por gestos: “Quem… o que é que ele quer?” — O que foi que ele disse? — perguntou o idoso, sentindo algum remorso e a querer, de algum modo, compensar o meu filho, envolvendo-o na conversa. — Ele perguntou-me quem o senhor é e o que quer. — O meu nome é Ben — disse o desconhecido a James. E continuou: — Isto é que foi uma pescaria, rapaz. Eu… — Ele é surdo — interrompi. — Não consegue ouvi-lo.
Não consegue sequer ler os seus lábios. — Oh, claro, que estúpido sou! “Este é o Ben,” indiquei por gestos, “e estava a observar-te por detrás daquele ácer. Veio felicitar-te pela forma como lidaste com o peixe e já estava a ficar um pouco irritado por não lhe responderes de imediato.” “Compreendo”, gesticulou James, de volta. “Pobre velhote, merece respeito, achou-me mal-educado, peço desculpa.” — O que é que ele disse? O que é que ele disse? — perguntou Ben, ansioso.
Evitando qualquer referência ao “pobre velhote”, expliquei: — Ele disse que lamentava tê-lo feito pensar que estava a ser pouco respeitador. — Pobre rapaz! Como é que ele ficou assim? — perguntou Ben. — É hereditário — expliquei, depois de traduzir a pergunta de Ben para o meu filho. Fui respondendo, simultaneamente, por gestos e voz, para que todos compreendessem o que estava a dizer. — Os avós maternos dele eram ambos surdos profundos.
Os médicos disseram-nos que, geralmente, o problema salta uma geração e que depois atinge 25% dos netos. Há quatro netos e apenas um é surdo. — Mas como é que ele pesca?— insistiu o idoso, agora realmente confuso. — Como é que ele pesca tão bem? Lançou a linha suavemente e soube colocar aquele anzol numa superfície de águas tranquilas, cercadas de correntes cruzadas, sem um único sinal de arrastamento, pelo que pude observar. Fisgou o peixe na perfeição.
— Não é preciso ouvir para pescar. A surdez do James é, na verdade, uma bênção em termos de pesca. Quando pescamos juntos, não falamos; comunicamos por sinais. Posso estar a quarenta e tal metros dele e manter uma conversa normal, sem fazer qualquer barulho. Nunca temos de gritar. — Isso espanta-me — disse o velhote, tirando o chapéu e coçando a cabeça. — De que tamanho era aquele peixe, rapaz? “Não sei exatamente”, gesticulou James, encolhendo os ombros ao mesmo tempo. “Grande, um peixe realmente grande, gordo e rijo.” — Sabes, eu ainda continuo espantado com a tua proeza no rio.
A maior parte das pessoas não teriam parado no sítio onde colocaste o anzol. Como é que sabias que aquele peixe estava ali? Quando lhe traduzi a pergunta por gestos, James riu-se. Depois, virou-se para nós com uma expressão tão solene quanto lhe era possível e disse, por gestos: “O segredo é simples, muito simples. Se escutares, consegues ouvi-los.”Refletimos, em silêncio, sobre a ironia daquele pensamento. Depois, começámos a subir a corrente, em direção a águas mais rápidas. Os meus dois filhos patinhavam à minha frente e nunca chegaram a aperceber-se de que o meu riso se tinha transformado em lágrimas.
Gregory J. Rummo