A pesquisadora Luciana Walther e seu Temaki (Foto: arquivo pessoal)
O trailer do documentário “O Vibrador Dialético” me fisgou nos cinco segundos iniciais. Essas são as primeiras frases narradas: “Ao longo de quatro anos, entrevistei mulheres sobre consumo erótico. Porque mulheres têm sexualidade. Porque mulheres consomem produtos eróticos. Mas a sociedade gosta de fingir que não”. A voz, fui descobrir, é de Luciana Walther– professora de marketing e doutora em administração.
Luciana inventou de pesquisar cientificamente o comportamento de quem compra sex toys, lingeries, cosméticos sensuais… Isso porque, segundo ela mesma, estima-se que aconteçam 120 milhões de relações sexuais ao redor do mundo por dia. Boa parte delas envolve produtos ou serviços (de camisinhas e anticoncepcionais à vibradores, motéis etc). E quase ninguém do universo acadêmico se debruça sobre o tema!
Tive o privilégio de assistir o documentário na íntegra. Em outubro, ele estreia no congresso norte-americano da Association for Consumer Research.Depois, Luciana me prometeu que vai disponibilizar pra gente colocar aqui. Fiz uma entrevista bem legal com ela e, confesso, sempre fico passada ao lembrar como ainda estamos mergulhados em tabus… Por que deveríamos ter tanta vergonha de assumir que nos masturbamos e usamos brinquedinhos pra apimentar a relação?
1. As mulheres são as maiores consumidoras de produtos eróticos e, ao mesmo tempo, as mais socialmente “reprimidas/julgadas”. Foi isso que te motivou a fazer um recorte de gênero?
Estatísticas sobre o mercado erótico brasileiro mostram que 70% da clientela dos sex shops são formados por mulheres. Temos visto o surgimento das chamadas boutiques eróticas femininas, onde mix de produtos, atendimento e decoração são planejados especificamente para mulheres. Em algumas delas, a entrada de homens é proibida. A indústria erótica tem criado produtos com design ultrafeminino tanto em forma – como os vibradores esculturais da marca sueca LELO – quanto em função – como os massageadores clitoridianos que preveem o clitóris como fonte dos orgasmos femininos (em vez da penetração vaginal). O crescimento da cosmética erótica também é um indício da grande participação feminina nesse mercado consumidor. Ainda assim muitas consumidoras que entrevistei disseram sentir vergonha de consumir produtos eróticos e, principalmente, de comprá-los na presença de consumidores do sexo masculino. Entender a construção da sexualidade feminina como motivo de vergonha pode ser um primeiro passo para combater essa visão.
2. Aliás, foi difícil encontrar mulheres que topassem falar abertamente?Muitas aparecem usando máscaras, óculos e outros disfarces…
Foi mais fácil encontrar consumidoras dispostas a dar entrevistas do que eu imaginava. Uma entrevistada ia indicando outra. Sabendo se tratar ainda de um tabu, pedi às entrevistadas que me deixassem filmá-las, oferecendo a elas a possibilidade de negar o pedido ou de aceitá-lo com o uso de disfarces que protegessem suas identidades. A minoria não quis ser filmada. Algumas se deixaram filmar sem nenhum disfarce. Gostaria muito de que minhas entrevistadas sentissem orgulho de fazer parte de um estudo que tenta combater a vergonha da sexualidade feminina. Mas, como você pode ver no filme, algumas ainda se sentem envergonhadas. Como pesquisadora, creio que é meu dever respeitar isso.
3. Um dado da USP sempre me inquieta: 53% das brasileiras entre 18-25 anos declaram nunca ter se masturbado – contra 4% dos homens. Por aí já dá pra imaginar o tamanho do tabu, né? O que você ouviu nesse sentido que te surpreendeu?
Uma entrevistada me contou como teve seu primeiro orgasmo quando já tinha quase 30 anos de idade, depois de ter tido longos namoros e um casamento. A descoberta tardia do orgasmo se deu quando ela usou um massageador elétrico de costas para masturbação por massagem clitoridiana. Nas sociedades contemporâneas ocidentais, uma mulher que não tem orgasmos pode ser vista como incompleta, incompetente ou até doente, mesmo que, na verdade, ela não seja exceção. Então, para essa entrevistada, houve uma verdadeira transformação identitária. O prazer, que antes era relegado a segundo plano, passou a ter mais importância em sua vida e em seus relacionamentos. Ela passou a se conhecer melhor e a se entender como uma nova mulher. E isso só foi possível por causa da masturbação potencializada por um produto elétrico.
4. Em 2015, as pessoas em geral ainda têm a ideia de que vibrador é coisa de “pervertida” e “encalhada”?
Sim. Tanto homens quanto mulheres podem enxergar a mulher que usa um vibrador como encalhada. Mesmo no caso de uma mulher linda, famosa, bem-sucedida e casada, como a atriz Luana Piovani. Quando ela postou uma selfie na qual seu vibrador aparecia acidentalmente em segundo plano, foi duramente criticada nas redes sociais. O desempenho sexual de seu marido foi questionado. Muitas pessoas não têm a menor ideia de que produtos eróticos podem e são usados para potencializar relacionamentos, e não para destruí-los ou compensar sua ausência. Além de “encalhada” ou “mal comida”, as mulheres que não mantêm sigilo sobre seu consumo erótico podem também ser tachadas de “traidoras”. Uma gerente de sex shop relatou que o marido de sua cliente não a deixava usar vibradores sozinha porque se sentia traído.
5. Outra coisa que me impressiona: o fato de alguns homens considerarem o uso como “traição”. Queria que você comentasse a fala de uma entrevistada sobre o “homem-provedor”, inclusive, do prazer da mulher.
A entrevistada Bianca (nome fictício) me disse que, depois de algum tempo de namoro, costuma ter a “conversa sobre sex shop”. Quando ela diz que possui vibradores e que gostaria de usá-los com ele, a reação masculina foi sempre de choque ou imediata resistência. Ela acredita que isso aconteça porque, na nossa sociedade (e em outras), o homem é visto como o provedor de tudo. Do dinheiro, da proteção e do prazer feminino. Por isso, ele se sente intimidado ou ameaçado por um produto que pode lhe roubar esse papel. Ele teme ser substituído pelo vibrador. Mas o que minha pesquisa mostrou foi justamente o contrário. Mulheres querem usar produtos eróticos para apimentar a relação e não para substituir o homem. Nenhuma disse não precisar mais do outro. Ao contrário, várias fizeram questão de enfatizar que relacionamentos, para elas, são insubstituíveis.
6. Nas minhas palestras, mostro e vendo dezenas de sex toys. Acho curioso como a esmagadora maioria opta por produtos que não tenham formato fálico, mas sejam apenas estimuladores clitorianos. O seu documentário aborda essa questão também…
A indústria tem desenvolvido produtos aderentes à visão de que é o clitóris o órgão responsável pelos orgasmos femininos. Mas, na minha pesquisa, esse entendimento não apareceu como prevalente entre as consumidoras. Um artigo seminal da feminista Anne Koedt, intitulado O Mito do Orgasmo Vaginal, explica por que mulheres e homens mantêm o mito de que os orgasmos femininos seriam produzidos por penetração vaginal. Uma das razões é o desconhecimento do próprio corpo por parte das mulheres. Isso vai ao encontro da estatística da USP mencionada por você, que indica que muitas não se masturbam. Daí a falta de conhecimento sobre o próprio corpo. Vendedoras de sex shop entrevistadas por mim contaram que, muitas vezes, precisam dar aulas de anatomia às consumidoras, além de explicar a usabilidade dos produtos. Então, não identifiquei uma preferência das consumidoras por estimuladores clitoridianos. Mas sim uma resistência por parte de seus companheiros à adoção de produtos de formato fálico. O que apareceu é que homens podem ter medo da competição em tamanho e em eficácia, por isso resistem à adoção do vibrador fálico.
7. Alguns mitos são que “as mulheres viciam nesses produtos” e que “eles podem destruir um relacionamento”. O que você concluiu?
Minha pesquisa indica a refutação desses mitos. O vício em produtos eróticos foi mencionado ou contemplado pelas consumidoras apenas no que diz respeito ao uso a dois. Uma entrevistada disse que não consegue mais transar com seu marido sem o uso de produtos eróticos. Outra revelou que não gostaria de estar nessa situação. Mas nenhuma sequer cogitou o vício no uso individual de vibradores ou disse não precisar de um(a) parceiro(a). Todas as entrevistadas disseram que produtos eróticos “apimentam” (verbo muito usado por elas) o relacionamento, podendo até ressuscitar a vida sexual inativa de um casal que esteja junto há muito tempo. Concluí que consumo erótico pode ser construtivo para o bem-estar da mulher, para os relacionamentos, para a igualdade de gênero e para a sociedade em geral.
POLEMICA PB