Shakra, rei dos deuses, ergueu-se do seu trono dourado e observou a Terra com atenção. Havia oceanos reluzentes e nuvens como pérolas, montanhas com cumes de neve e continentes de muitas cores.
Embora tudo fosse belo, Shakra sentiu uma certa apreensão.
Os seus sentidos luminosos expandiram-se pelos céus.
Sentiu o calor da guerra.
Ouviu o balir dos vitelos, o ladrar dos cães, o grasnar dos corvos. Ouviu crianças a chorarem e vozes a gritarem de raiva. Ouviu o choro dos esfomeados, dos solitários, dos pobres. As lágrimas rolaram-lhe pela cara abaixo e caíram sobre a terra como aguaceiros de meteoros.
─ É preciso fazer alguma coisa! ─ disse Shakra.
Metamorfoseou-se num guarda-florestal e levou consigo um grande arco em osso. A seu lado caminhava um grande cão preto. O pelo do cão era emaranhado, os olhos brilhavam como fogo incandescente, os dentes mais pareciam presas, e a boca e língua pendente eram da cor do sangue.
Shakra e o cão deram um salto e mergulharam em direção à Terra por entre as estrelas brilhantes. Por fim, aterraram mesmo ao lado de uma cidade esplêndida.
─ Quem és tu, forasteiro? ─ perguntou, admirado, um soldado, do alto das muralhas da cidade.
─ Sou estrangeiro nestas paragens e este ─ disse, apontando o animal com um gesto ─ é o meu cão.
O cão preto abriu as mandíbulas. O soldado que estava de guarda às muralhas ficou aterrado. Foi como se estivesse a olhar para um enorme caldeirão de fogo e de sangue. A garganta do cão emanava fumo. As mandíbulas abriram-se ainda mais e mais…
─ Fechem os portões! ─ ordenou o soldado. ─ Fechem-nos imediatamente!
Mas Shakra e o cão conseguiram saltar os portões cerrados.
Os habitantes da cidade fugiram em todas as direções, como se fossem marés a subir ao longo de uma praia. O cão foi no seu encalço, juntando as pessoas como se fossem um rebanho de ovelhas. Homens, mulheres e crianças gritavam, aterrorizados.
─ Parem! ─ gritou Shakra. ─ Não se mexam!
As pessoas imobilizaram-se.
─ O meu cão tem fome. O meu cão tem de ser alimentado.
O rei da cidade, a tremer de medo, ordenou:
─ Rápido! Tragam comida para o cão! Imediatamente!
Em breve, carroças chegavam ao mercado carregadas de carne, pão, milho, frutos e cereais. O cão engoliu tudo de uma só vez.
─ O meu cão precisa de mais comida! ─ exclamou Shakra.
As carroças voltaram de novo, carregadas. E o cão voltou a devorar tudo de uma assentada. Depois, soltou um grito de angústia, um grito que parecia emanar das profundezas do Inferno. As pessoas caíram por terra e taparam os ouvidos, aterradas.
Shakra, o forasteiro, fez soar a corda do seu arco com um ruído semelhante ao ribombar do trovão numa noite de tempestade.
─ O meu cão ainda tem fome! ─ Dêem-lhe de comer!
O rei contorceu as mãos e pôs-se a chorar.
─ Já lhe demos tudo o que tínhamos. Não temos mais!
─ Sendo assim, o meu cão alimentar-se-á de pastos e montanhas, de pássaros e animais ferozes. Devorará as rochas e mastigará o sol e a lua. O meu cão alimentar‑se-á de vós!
─ Não! ─ gritaram as pessoas. ─ Tem misericórdia de nós! Rogamos-te que nos poupes! Poupa o nosso mundo!
─ Então acabem com a guerra ─ disse Shakra. ─ Alimentem os pobres. Cuidem dos doentes, dos sem-abrigo, dos órfãos, dos velhos. Ensinem a bondade e a coragem às vossas crianças. Respeitem a terra e todas as suas criaturas. Só assim açaimarei o meu cão.
Shakra transformou-se num gigante, resplandecente de luz.
Ele e o cão deram um salto e, numa espiral de fumo, subiram cada vez mais alto.
Lá em baixo, nas ruas da cidade, homens e mulheres olhavam o céu, consternados. Estenderam as mãos uns para os outros e prometeram mudar as suas vidas, fazer o que o forasteiro lhes tinha ordenado que fizessem.
Bem lá de cima, Shakra sorriu no seu trono dourado, ao olhar para a Terra.
Limpou a testa com um braço resplandecente.
As inúmeras estrelas cintilavam, fulgentes.
E a escuridão dormitava entre elas, tal como um cão junto de uma fogueira.
Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005
(Tradução e adaptação