Pais relatam experiências de apoio aos filhos que seguem comportamentos associados à feminilidade
Asher Mechanen, de 3 anos, surpreendeu seu pai há pouco mais de 1 ano quando escolheu usar um vestido para ir a uma festa. O pai, Seth, tentou pressioná-lo para que usasse “roupa de menino”, porque não queria responder às perguntas que muitas pessoas fariam quando vissem Asher e porque temia que seu filho fosse julgado pelos outros convidados. Mas Asher fez tanta questão de usar o vestido que Seth logo sentiu que não estava fazendo a coisa certa.
“Eu me desculpei com ele e o ajudei a colocar o vestido. Depois, virou algo que ele queria vestir todos os dias”, diz Seth, que relatou sua experiência no artigo “My Son Wears Dresses, and That’s OK with Me” (“Meu filho usa vestido, e tudo bem para mim”, numa tradução livre).
“Tive algumas dúvidas no início, porque queria protegê-lo das pessoas que podiam hostilizá-lo. Mas cheguei à conclusão que o ajudaria mais se não o reprimisse por causa de temores possivelmente injustificados.”
Menino princesa
A americana Cheryl Kilodavis levou um susto parecido quando seu filho Dyson, de 5 anos, lhe disse: “Adoro usar vestidos e amo as cores rosa e vermelho”. Como ela conta no livro “My Princess Boy” (“Meu Menino Princesa”, numa tradução livre; 2009), sua primeira reação foi combater esta vontade, oferecendo brinquedos tidos como “adequados” para meninos, como carrinhos e caminhões, e fazendo com ele lesse determinados livros.
Dyson ainda assim quis sair fantasiado de princesa no Dia das Bruxas. Mas Kilodavis não queria ceder. Foi seu filho mais velho quem a fez pensar que o problema estava nela e não no irmão mais novo, ao perguntar-lhe: “Mamãe, por que não pode simplesmente deixá-lo ser feliz?”.
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No livro, Kilodavis relata que Dyson ama a cor rosa e objetos brilhantes. Algumas, vezes usa vestidos. Em outras, calças jeans. Ele gosta de usar uma tiara de princesa, inclusive quando está subindo em árvores. “Nossa família o ama como ele é. Esta é uma história de amor e aceitação e um chamado à tolerância, ao fim do bullying e dos preconceitos”, escreve ela.
Por conta de sua experiência, ela deu início a uma campanha voltada para professores para promover a aceitação das particularidades de cada criança. “É hora de reivindicar as diferenças e, com sorte, aprendermos a aceitar aqueles que se sentem diferentes”, disse ela em uma conferência.
Identidade de gênero
Pilar Roldán, diretora de uma escola infantil na Espanha, defende que é preciso deixar que crianças usem as roupas e os brinquedos que desejam sem classificá-los.
“Não é porque um menino brinca com bonecas e de cozinhar que vamos nos preocupar ou dizer alguma coisa. Claro que impomos limites e ensinamos valores, mas nossa filosofia é de que a criança esteja feliz e aprenda brincando, seja qual for sua identidade sexual.”
A diretora de jardim de infância Verónica Sapag, do Chile, considera a idade um fator chave. “Não é a mesma coisa quando uma criança de dois anos quer se vestir de princesa e quando uma criança de cinco, seis, sete, oito anos ou mais velha quer fazer o mesmo”, afirma ela.
“Ao redor dos dois anos a criança está identificando seu gênero. É normal que um menino queira brincar de boneca ou vestir-se de princesa ou que uma menina queira brincar com carrinhos ou vestir-se de super-herói.”
Para Sapag, é preciso atenção para perceber quando uma criança começa a rejeitar tudo que está relacionado com seu gênero ou manifestar angustia ou sofrimento cada vez que tenha que fazer algo relacionado a ele. “Se for este caso, pode ser que a criança não esteja feliz sendo quem é.”
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Problema de família
A psicóloga María Esther Revelo é especialista em terapia familiar e recentemente orientou um casal a lidar com o filho. Quando os pais não estavam em casa, Luis*, de 7 anos, gostava de usar as fantasias de princesa da irmã, que é um ano mais velha. A primeira vez que sua mãe o viu, ela se assustou e pensou: “Meu filho gosta de se vestir de mulher”.
Os pais perguntavam por que ele estava com aquela roupa e mandavam ele se trocar. Logo, este comportamento do menino virou um problema na família. “Nos finais de semana, ele se negava a se vestir. Quando havia uma festa, a mãe escolhia a roupa, mas ele não queria usá-la. Eles tinham brigas tremendas por causa disso. O menino acabava passando toda a festa triste, porque tinha ido com a roupa que não queria. Não se sentia confortável”, diz Revelo.
Os pais de Luis decidiram procurar ajuda porque receavam que ele tivesse inclinações sexuais diferentes das consideradas normais para seu gênero. “Ele não achava que estava fazendo algo ruim. Mas, ao escutar que ‘não era assim que deveria ser’, ele sentia que estava indo contra alguma coisa, e criar este medo numa criança poderia levar a um comportamento inadequado. Até aquele momento, se tratava de uma coisa simples, a escolha de um vestido, e nada mais”, afirma a psicóloga.
Comodidade
Revelo diz que é fundamental escutar não só à criança, mas também os pais. “Primeiro, conversamos com o menino. Era muito fácil dialogar com ele. Foi muito bom entrar neste mundo de fantasia que ele estava alimentando por meio dos vestidos. Isso me permitiu orientar seus pais”, diz ela.
“Descobrimos que o menino tinha uma inclinação pelo estímulo sensorial que o vestido produzia nele, desde a perspectiva tátil por causa dos tecidos sedosos e suaves até a perspectiva visual, porque ele gostava de cores brilhantes e fortes.” Sua fascinação pelas fantasias usadas por meninas também se revelou uma opção pela comodidade.
“Ele me disse que as calças o incomodavam muito e que era mais agradável usar as fantasias da irmã”, afirma Revelo, que acrescenta que Luis não tinha problemas em usar bermudas. “Ao longo do ano escolar, num período de nove meses, pudemos notar mudanças. Seu interesse nas fantasias acabou se modificando lentamente e ele passou a usar roupas mais parecidas com as de outros meninos.” Para a psicóloga, o comportamento de Luis é “totalmente normal”, e menino até hoje é fascinado por cores fortes.
Preconceitos
Segundo Revelo, o temor manifestado pelos pais de Luis é compartilhado por muitas famílias.
“Temos que trabalhar com os pais para que eles se livrem de seus preconceitos. Antes de tudo, é preciso vir o amor e capacidade de lidar com as situações que se apresentam na vida de nossos filhos”, afirma.
“O pai precisa entender o que teme exatamente. É homofobia? Uma dificuldade sexual pessoal? Olhar para dentro de nós mesmos ajuda muito.”
Depois de trabalhar os medos dos pais de Luis e sugerir que eles dialogassem com seu filho, Revelo acompanhou uma mudança notável na dinâmica familiar.
“Liberado dos preconceitos, o menino pode se sentir melhor. Não havia uma conduta anormal que precisava ser tratada. Não havia razões para intervir. Era só observar e acompanhar. Assim, estes pais conseguiram compreender seu filho.”
Seth, o pai do caso que abre esta reportagem, conta que não buscou ajuda profissional porque “não via nenhum problema com sua decisão” de deixar seu filho Asher usar vestidos. “É uma peça como qualquer outra. De vez em quando, minha filha veste calças jeans, e ninguém me pergunta se ela é travesti”, afirma ele.
“Se meu filho for gay, que assim seja. Talvez ele não seja. Talvez seja travesti. Talvez não seja. Não tenho controle sobre nada disso. Tudo que posso fazer é ser compreensivo.”
Liberdade
Hoje, Seth faz um mestrado em Psicologia Clínica com especialização no desenvolvimento de crianças e adolescentes. Ele diz ter visto muitas formas com que pais podem prejudicar o desenvolvimento de seus filhos, mas garante que deixar um menino usar vestidos não é uma delas.
“Geralmente, os amigos e familiares me dão apoio. Para certas pessoas, a situação pode ser estranha, mas o problema não é nosso, é deles. Algumas dizem que seria duro para eles se seus filhos quisessem fazer o mesmo. Outras dizem que queriam ter a coragem para tanto”, afirma Seth.
Ele diz que sua missão é criar os filhos com amor, alegria, limites e um guia moral – e, para ele, um menino usar vestidos não é uma questão moral. “Não há por que pais sufocarem a criatividade e a liberdade dos filhos quando algo é feito de forma saudável. Deixem que eles desfrutem desses momentos. Talvez se fantasiar seja só uma diversão. Talvez queiram testar uma nova identidade. Mas não somos nós que devemos definir isso”, diz Seth
“Uma criança gay ou transgênero não vai mudar de ideia se seus pais disserem que não gostam de quem eles são. Também não é saudável dizer para uma criança que busca se vestir de maneira diferente que aquela forma é proibida para meninos ou meninas.”
Hoje, Asher não usa mais vestidos diariamente, como é possível ver na série de fotos que seu pai publica na rede social Instagram. Agora, ele faz isso uma ou duas vezes por semana. “Às vezes, ele passa uma parte do dia de vestido e a outra fantasiado como o Hulk. Em outras ocasiões, põe sapatos brilhantes com uma camiseta de motocicleta e, em outras, um vestido com a máscara do Homem-Aranha. É tudo roupa. Todos gostamos de usar roupas diferentes para nos expressar ou para nos sentirmos cômodos”, afirma Seth.
“Acredito que o incômodo que alguns pais sentem reflete suas próprias inseguranças ou temores. Espero transmitir a meus filhos uma noção do que é correto ou errado, amor pela vida e empatia pelas outras pessoas. O resto depende deles.”