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CLUBE DA HISTORIA EM : O homem-livro

clube 

 

Evando, pedreiro sergipano, só foi alfabetizado aos 18 anos. Ganhou gosto. Não parou mais de ler. Montou uma biblioteca pública por conta própria. E ajudou a fundar outras 36.

 
 


 

A bem da verdade, a pergunta não chegou a surpreender o primei­ro e improvisado professor de li­teratura do pedreiro Evando dos Santos. Afinal, o aluno do esclarecido mestre-de-obras Dernival Pereira, sergipano como ele, tinha sido alfabetizado havia pouco tempo, aos 18 anos, na Escola Batista da Vista Alegre, zona norte do Rio de Janei­ro. Devia ter uns 21 na época em que foi apresentado pelo colega sexagenário a uma outra, digamos, geração de clássicos.

 

A conversa aconteceu durante uma ra­ra folga de um trabalho num prédio da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro. “Não é só isso, meu filho”, contornou Dernival, pisando a beata do cigarro ainda em brasa. Depois, completou como se fosse um mestre-de-obras literário: “Um clássi­co é um livro bem escrito, original, uni­versal e que fica para sempre”.

Evando prestou atenção, compreendeu mais ou menos e voltou a trabalhar. Mas levou, emprestados por Dernival, alguns li­vros de autores clássicos. Entre eles Ma­chado de Assis, Lima Barreto e Pablo Neruda. Tempos mais tarde, lendo oito pala­vras de um livro do escritor Tobias Barre­to de Meneses, também emprestado por Dernival, sentiu-se tocado. “A vida é uma leitura. Ler é lutar”, escreveu Barreto, que também era filósofo, poeta e jurista e, ainda por cima, sergipano! Daquela vez, Evando entendeu tudo.

Foi o mote que levaria Evando, anos mais tarde, a fundar a sua primeira bibliote­ca. O ex-pedreiro ajudou a criar outras 36 pelo país, incentivando e enviando livros. Foram 20 mil volumes para três Estados nordestinos. Até Angola, do outro lado do oceano, se viu contemplada. Essa história sensibilizou Oscar Niemeyer, que dese­nhou, de graça, o projeto da Associação Centro Cultural e Biblioteca Comunitária Tobias Barreto de Meneses, que Evando dirige hoje, aos 49 anos, na Vila da Pe­nha, Rio de Janeiro.

Evidentemente, o nome da biblioteca tinha de ser uma homenagem ao escritor que abriu os horizontes do ex-pedreiro. Uma das teorias de Tobias Barreto susten­ta que a educação se baseia em imagens vistas em estampas impressas e em dese­nhos. Ora, isso confirmava aquilo que Evando sabia desde a infância em Aquidabã, pequena cidade do sertão sergipano.

Por ter trocado as horas de estudos pe­lo trabalho na roça, não aprendeu a ler quando garoto, mas adorava imaginar o enredo por trás das imagens nas páginas dos livros de cordel. Evando foi um meni­no que não conheceu o pai e que trabalhava com o avô, cortando junco para confec­ionar travesseiros e colchões em que outros dormiam. A sua família era formada pela mãe, Zelita, e o avô, José Mestre. Dormiam todos numa esteira dura de taboa. Não importava.

Evando nunca foi de ficar deitado, nem mesmo nas horas de folga. Para ele não existia diversão me­lhor do que correr até à feira da cidade para ouvir as histórias de cordel narradas por vendedores ambu­lantes de remédios e livros. Eram os chama­dos “propagandistas”. “Escutava as his­tórias, gravava-as todas na memória e de­pois pedia aos propagandistas para ver de novo as figuras. Era como se já pudes­se desvendar o significado do amontoado de letras”, lembra. Embora a sua cartilha tenha sido os Sal­mos, os primeiros livros que procurou para ler foram mesmo os de cordel, que mar­caram a sua infân cia. Evando nunca se esqueceu das fantásticas passagens contidas em títulos como O gigante do terror, Lampião no Inferno, O boi leitão.O fascí­nio era tanto que chegou a ter em casa 300 obras de cordel.

 
 
Filmes, livros e distinções

Desde que começou a ler, a vida de Evan­do passou a estar rodeada de todo o tipo de livros. Na sua pequena casa na Vila da Pe­nha, bairro carioca, há livros por todos os cantos. Os móveis parecem servir apenas de su­porte para as pilhas de volumes que se acu­mulam pela sala, corredor, cozinha. Até o colchão, espremido no quarto que divide com a mulher, a professora Maria José, tornou-se um objeto fora de lugar.

Os livros não param de chegar desde o dia em que, há 11 anos, Evando saiu para consertar uma canalização e voltou para ca­sa carregando cerca de 50 títulos que iam ser deitados fora por quem o tinha contrata­do. O sergipano tomou gosto. Passou a pedir outros livros para ler e depois distri­buir. Foi assim que a casa onde morava com a mulher e a mãe se tornou biblioteca comunitária, com ho­rários e regras bem diferentes. Jamais fechava, nem aos domingos. Muitos livros emprestados nem precisavam de ser devolvidos. “Se o leitor se encanta com uma obra a ponto de a querer tanto, que fique com ela. A leitura cumpriu ass im o seu pa­pel”, filosofa.

Evando e as suas ideias pouco conven­cionais já inspiraram duas curtas-metragens (O homem-livro,de Ana Azevedo, e O pedreiro literário,de Luiz Cláudio Li­ma) e até um romance do escritor e filóso­fo italiano Remo Rapino (Un cortile di pa­role,Carabba Editore, 2006). A sua traje­tória também está presente entre os 26 de­poimentos de reviravoltas e supe­rações presentes no livro Recomeços (Edi­tora Saraiva, 2009). Indicado pela escritora Nélida Piñon, Evando recebeu uma medalha da Acade­mia Brasileira de Letras. Ganhou ainda, com outras dez personalidades, o prémio Perso nalidade Cidadania 2009, criado pe­la UNESCO, Associação Brasileira de Im­prensa (ABI) e Folha Dirigida.

Os livros de Evando estão a ser transfe­ridos para a Biblioteca Tobias Barreto de Meneses para auxiliar na formação daque­les que, como ele no passado, tiveram pouco acesso à leitura. Já estão cataloga­dos 1500 dos 4500 títulos disponíveis. A construção da biblioteca é um capítulo fundamental dessa odisseia. “O meu amigo está a fazer história”, afirma João de Xerém, que o conheceu quando trabalhava numa rádio comunitária. “Nunca se ouviu falar de um pedreiro capaz de construir um patrimó­nio cultural desta relevância”, diz.

A biblioteca está a ser organizada com o mesmo entusiasmo com que Evando, anos atrás, ligou para um programa de televisão para fazer um pedido ao vivo ao entrevistado da tarde. O entrevistado era o arquiteto Oscar Niemeyer. Depois de ter pincelado a sua história à produção do MultiRio, da TV Bandeirantes, Evando perguntou a se­co a Niemeyer:

— O senhor faria de graça um projeto para a minha biblioteca na Vila da Penha?

Impressionado pelo atrevimento e pe­lo que acabava de saber sobre aquele operário das letras, o arquiteto respondeu:

— Sim, faço-o por si. Na verdade, sempre tive o sonho de ver centenas de bibliotecas desse tipo espalhadas pelo Brasil.

 

Passaram-se quatro anos entre aquele primeiro contacto e a realização da obra, inaugurada em dezembro de 2008. Embo­ra assente num belo projeto, ela não deixa de refletir a distância entre o idealismo e a prática. Faltam verbas para tu­do sair como o sonhado. A associação é mantida com doações e parte da reforma da mãe de Evando. Na fachada espelhada, há um comunicado escrito à mão avisan­do que os lavabos não funcionam. A chave fica sempre com Evando. Quando ele não está, basta ligar para a sua casa e ele logo aparece, sempre disposto a atender quem quer que seja, como já fazia em sua casa, hoje um informal prolongamento administrativo da biblioteca.

“Num país com um índice de leitura tão baixo, é impressionante ainda existi­rem heróis assim”, ressalta a professora Sônia Izoton, dona de um tradicional colé­gio na Vila da Penha, o Jardim Escola Pe­queno Torcedor. Ela costuma participar, com outros professores e alunos, nos “ar­rastões literários” que Evando promove, distribuindo livros pela cidade. Nessas ocasiões, o ex-pedreiro aparece paramen­tado de homem-livro. O traje, de cartoli­na, tem frases de grandes escritores. Evan­do talvez exagere no seu apreço pelos livros quando afirma que são os filhos que não teve. Mas não seria nenhum exagero co ncluir que esta é uma daquelas histórias que superam, de longe, qualquer ficção.

 
 
 

Lina de Albuquerque 

Brasileiros

São Paulo, Dezembro de 2009

in Courrier Internacional, Junho 2010, nº 17