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CLUBE DA HISTORIA EM : O milagre da Cláudia

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Quando vi a Cláudia naquela reportagem sobre a atividade de certas crianças, a palavra que me ocorreu foi «milagre». Geralmente, a ideia que está associada a tal palavra é a de uma relação entre a pessoa e Deus ou alguns dos santos. Como vem no dicionário: «Milagre é um acontecimento extraordiná­rio que não pode ter uma explicação natural.» E também diz de outra maneira: «Milagre é um acontecimento que causa espanto e admiração, um acontecimento que assombra.»

Não sei em qual destas alíneas hei de pôr aquilo que senti ao ver a reportagem da Cláudia. Mas sei que seria uma grande mono­tonia se não existissem os milagres. A vida ficaria irremediavel­mente pobre. Tudo seria lógico, racional, previsível – para empre­gar a palavra certa: chato. O povo (lá estou eu a socorrer-me da sabedoria popular…) costuma dizer que «o amor faz milagres». E quem diz amor, diz bondade, solidariedade, compreensão.

Como lhes disse, aconteceu-me a sensação de estar a assistir a um milagre quando vi o quadro pintado pela Cláudia. Aliás, a arte provoca sempre em mim a sensação de estar a assistir a algo de assombroso, de inexplicável, ou seja: a qualquer coisa como um milagre, mesmo entendendo a palavra nas suas di­mensões dicionaristas e prosaicas.

Aí pelos meus quinze anos tive uma revelação com dois quadros de Van Gogh. Num, representava-se o quarto do pintor. Um quarto modesto, a cama e a mesinha de extrema sobriedade. Toscas, mesmo. No sobrado, as tábuas eram irregulares, gastas e já se notava a ação do caruncho. O outro quadro mostrava-me apenas as botas de um pobre: esfoladas, cambadas, rotas, sem atilhos.

Ali não havia um objeto, havia uma pessoa. Eu vi um homem no extremo da miséria e da solidão talvez melhor do que se o visse em carne e osso. Estão a ver o milagre: onde estava um objeto, eu via uma pessoa, via-a a andar, sentia-lhe a respiração! Se estivesse com mais atenção, até o ouviria contar-me as suas mágoas, os seus protestos, os seus sonhos…

Devo dizer que a arte sempre me deu a sensação de um milagre, e não me refiro apenas ao quadro da Cláudia. Por exemplo, a poesia, que é a forma artística, digamos, mais próxima de mim, por uma questão de inclinação pessoal. Estou mais desperto, mais sensível, no território das palavras do que no dos sons ou das cores, embora, evidentemente, não lhes seja alheio. Às vezes tenho a impressão de que, se me pusesse a dizer os versos que guardo dentro de mim, levava um ano inteiro sem me calar um instante. Passe o exagero… poético.

Ora, falava eu de milagres a propósito da pintura de Cláudia. A Cláudia anda, se não me engano, pelos quinze anos. Fala pouco. Digamos que não é exuberante. Como se quisesse dizer: «Tudo o que sei, está na minha pintura.»

Reparem neste quadro da Cláudia. Representa um circo. Largas manchas de cor, uma cor viva, gritante por vezes. Mas sempre uma cor que fala. O palhaço rico está lá todo em vermelho e azul, enquanto o palhaço pobre não passa de uma pincelada de um castanho tris­temente sujo. Em cima, no lugar da boca, um traço branco que não se percebe bem se é uma cicatriz ou um sorriso. Trata-se de uma figura mais real, mais humana, mais viva do que a do palhaço rico. Isso diz-nos alguma coisa sobre a visão que a Cláudia tem do mundo.

No quadro não há subtilezas de linhas ou de enquadramentos, mas as manchas estão bem definidas, têm o seu espaço próprio, não se misturam caoticamente. Não se trata de um universo ao acaso, mas tudo lá está ordenado segundo uma vontade e um projeto. Impressiona aquela mancha no alto do quadro e não se percebe bem se é uma pessoa, se um pássaro. Dois traços verticais mais escuros dizem-nos que se trata do trapezista. Mas onde está o milagre? – perguntarás tu.

É que me falta ainda dizer uma coisa: a Cláudia não tem braços e pinta os seus quadros segurando o pincel na boca. Precisa, é certo, de quem lhe prepare a paleta e o cavalete, de quem lhe vá chegando os materiais que utiliza. Um milagre? De qualquer modo, um milagre partilhado? Não sei se é a palavra certa, mas de momento não me ocorre outra…

Mário Castrim

O lugar do Televisor (II volume)

Lisboa, Ed. Além-Mar, 2000