O início da Copa do Mundo reforçou em uma família de Brasília o orgulho por uma característica que a torna bastante peculiar: dos 24 integrantes, 14 nasceram com 6 dedos nas mãos e nos pés. Apaixonados por futebol, eles decidiram organizar uma festa junina embalada pelo torneio na próxima segunda-feira (23), quando a Seleção Brasileira enfrenta Camarões no Estádio Nacional Mané Garrincha. “Nós já somos hexa. O Brasil é que precisa correr atrás de nós”, brinca a aposentada Silvia Santos.
A característica, que a família considera “charmosa”, deve inspirar camisetas para comemorar os jogos do Brasil durante o Mundial. A festa, que acontecerá em um condomínio de Águas Claras, foi batizada de “Arraiá dos Hexas”. Brincalhões, os familiares dizem que os “pentas” do grupo também serão convidados porque representam o número atual de títulos mundiais do Brasil.
A ideia é que todos usem camisetas com estampas bordadas com a figura de uma mão com 6 dedos na tarde da próxima segunda-feira e, de alguma forma, transmitam juntos boas energias para o time de Neymar e cia.
O nome do atacante, no entanto, nem aparece na lista dos jogadores preferidos da família de flamenguistas. As lembranças imediatas e bastante eufóricas são o meia Oscar, o atacante Hulk e o zagueiro David Luiz. “E eu também gosto do Fred, viu?”, confessa a dona de casa Silvana Santos da Silva, mãe de Maria Morena, de 8 anos. O primeiro da família a apresentar polidactilia (mutação genética que leva uma pessoa a nascer com dedos a mais) foi o patriarca, Francisco de Assis Carvalho da Silva, pai de Silvana. Advogado e músico, ele ajudou a fundar o Clube do Choro de Brasília e sempre viu na situação um motivo de honra. Por causa disso, ganhou o apelido de “Six”. Dos cinco filhos, quatro herdaram a característica.
“A gente encara isso com muita naturalidade, acho que até pela forma como meu pai lidava. Aqui em casa, quem tem 5 dedos é que tem complexo. Funciona ao contrário”, explica Silvia. “Tenho três filhos, e só o mais velho [Eduardo] é que não tem [6 dedos]. Quando levei minha filha [Ana Carolina] para tirar os do pé, porque para colocar sandalinha complicava um pouco, Dudu pediu para guardá-los para colocar na mãozinha dele. Ele tinha 5 anos e se sentia excluído.”
A técnica em programação Ana Carolina lembra que, na infância, chegou a se sentir desconfortável com a característica que tanto agradava ao irmão, depois de ouvir piadinhas de que a mão dela se parecia com a de um extraterrestre. Sem traumas, a jovem hoje se diverte ao ver a cena entre a mãe e o irmão se repetir com o filho do meio, João Pedro, de 5 anos.
“Dos meus três filhos, só o mais velho, Bernardo, nasceu com 6 dedos. Então nosso problema é esse, porque o João [Pedro] sempre quer ter 6, como eu e o Bernardo. Ele vê e quer ser igual a nós”, ri. “Como ele nos pega como referência, acaba usando o dedo do meio para apontar as coisas, quando na verdade nós usamos o que seria nosso indicador.”
Apesar das “excentricidades”, a família garante que o dedo sobressalente não atrapalha nenhuma atividade. A diferença fica mais evidente na hora de posicionar os membros para fazer coisas mais precisas, como escrever – em vez de o lápis e a caneta ficarem entre o polegar o indicador, eles dividem a mão com dois dedos de um lado e quatro do outro.
Para evitar que esses momentos causem constrangimento às crianças, como os ocorridos com Ana Carolina na infância, as mães buscam ajuda nas próprias escolas. Caçula de “Six”, Silvana conta que a filha, Maria Morena, sempre relata que os coleguinhas insistem para ver a mão dela. “Em todo começo de ano, eu aviso a professora que ela tem 6 dedos, mas que consegue fazer tudo normalmente. Ela consegue cortar com tesoura sem dificuldade alguma, consegue escrever. Então, peço que a trate sem diferenças, porque isso não é um problema”, explica.
A pequena Maria Morena sonha em aprender a tocar piano e acredita que pode levar vantagem por ter dedos a mais. “Eu acho bem mais legal ser assim, consigo pegar mais coisas, tenho mais possibilidades”, diz. “Só não gosto quando as pessoas ficam querendo toda hora ver e ficar contando [para os outros]. Eu falo para eles: ‘Vocês têm 5 e eu, 6’. Acho estranho olhar as mãos deles e ver que eles têm menos.”
Também mãe de duas crianças com polidactilia e neta do músico “Six”, a veterinária Mariana Sousa afirma que as conversas com a coordenação da escola dos filhos renderam até um novo método para ensinar as diferenças entre as pessoas. Na sala de Pedro, de 12 anos, já não é mais consenso que todos têm dez dedos nas mãos e nos pés.
“O legal é que a gente viu uma mudança na escola também. A professora do Pedro parou de falar que, juntas, as mãos formam uma dezena, porque para ele não funcionava. Agora, ela diz que há pessoas diferentes – loiras, morenas, ruivas, de olhos azuis, verdes e castanhos – e que isso é assim mesmo, normal”, destaca a veterinária.
Para ela, as crianças dificilmente se sentirão envergonhadas pela condição, já que é considerada natural dentro da família. Mariana afirma ainda que, fora da escola, é difícil as pessoas notarem que ela ou os filhos têm 6 dedos. O mais novo, Arthur, de 1 ano e 5 meses, apresenta a mutação genética apenas nos pés. Festa e futebol Brincalhões, os familiares decidiram juntar as comidas típicas de junho à passagem da seleção brasileira pela cidade para realizar o “Arraiá dos Hexas” e convidar os familiares que são “pentas”.
Vestidos de verde, amarelo e azul, os “hexas” afirmam confiar no desempenho da Seleção ao longo da Copa e se dizem felizes com a realização do evento no Brasil. Eles não ignoram as outras necessidades do país, que pautaram protestos desde junho do ano passado, mas acreditam que seria pior não levar a taça desta vez.
“O gasto já foi gigantesco, e agora não consigo nem imaginar a reação das pessoas se a gente ainda não fosse campeão. Tem mesmo coisa a mudar, mas a gente não pode fechar os olhos para como é bonito isso tudo. Não é legal ver a interação entre tanta gente diferente, uma interação bonita? Você ver que, na porta do estádio, as torcidas se cumprimentam, a rivalidade é só em campo. Ou, então, ver os japoneses limpando o estádio [após perder por 2 a 1 para a Costa do Marfim na Arena Pernambuco, no Recife, no primeiro dia da Copa], aprender com os outros. É legal sentir esse clima, ver a cidade colorida”, ressalta a aposentada Silvia.
O filho mais novo dela, João, de 15 anos, é goleiro e conta que teve a mesma sensação ao ver suíços e equatorianos se divertirem antes do início da primeira partida do grupo E e da própria estreia do Mané Garrincha no Mundial, no último domingo. Ele foi o único membro da família a se programar para assistir a partidas do torneio no Mané Garrincha e diz que adorou a experiência.
A irmã Ana Carolina e a prima Mariana escolheram não ir ao estádio por causa dos filhos pequenos. “A Catarina tem só 4 meses, é muito pequena. Fico com medo tanto pela possibilidade de manifestação quanto pelo cansaço dela. E é normal criança ficar inquieta. Eu acabaria não aproveitando. É melhor me privar de ir agora, pelo nosso conforto”, afirma.
Alteração genética De acordo com a coordenadora de Doenças Raras da Secretaria de Saúde do DF, Maria Terezinha de Oliveira Cardoso, a polidactilia é a mais frequente entre as malformações. “Não temos dados sobre o DF, mas o que é possível dizer é que entre 3% e 5% dos bebês nascem com algum defeito congênito, e que os dedos a mais são os mais recorrentes”, disse.
A alteração genética está ligada à hereditariedade e, ao contrário do que muitas pessoas acreditam, não há fatores externos que possam desencadeá-la. O mais comum é que a pessoa nasça com apenas um dedo a mais em cada membro, mas há casos em que a mutação vem acompanhada de lábio leporino ou de doenças no coração.
Embora geralmente os dedos a mais funcionem bem, a cirurgia para extraí-los costuma ser recomendada. O tratamento é oferecido pela rede pública do DF, mas a mudança não chega nem a ser cogitada pela família.
Refutando a ideia de “defeito”, a aposentada Silvia afirma que a característica realmente dá muito orgulho aos hexas. Ela diz ainda que recebeu de um médico uma proposta para passar por mapeamento genético, mas que recusou por medo de que os filhos ficassem complexados sem necessidade.
“Ter dedos a mais não nos afeta em nada, é uma coisa maravilhosa. Para nós, é uma diferença que é qualidade. O estranho é quem não tem. Aqui, quando vai nascer bebê e fazem ultrassonografia, a pergunta não é se é homem ou mulher. Queremos saber se tem cinco ou seis dedos”, brinca. Filho mais novo de Silvia, João afirma que os dedos a mais o ajudam bastante como goleiro. O garoto de 15 anos contou com a ajuda da mãe para improvisar as luvas: eles compraram dois pares, um de boa qualidade e outro mais simples. No que era melhor, fizeram furos para poder acomodar o membro sobressalente e depois costuraram um dedo recortado do par de luvas de qualidade inferior.
G1