Eu tenho profunda inveja de quem aceita, de quem aclama o próprio coração, de quem não tem tempo para pensar demais. De quem é raso, de quem rir de tudo, de quem não faz questão de entender. Eu tenho profunda inveja de quem é fútil, de quem é monopolizado pela lógica cartesiana das coisas, de quem é bitolado pela fé cega, de quem é adestrado por deuses maus.
Eu tenho, profunda inveja de quem não viaja no tempo, não sofre pelo amanhã, não se lembra do que comeu. A minha memória, por mais curta que seja, também é seletiva. Ela se esquece de compromissos, receitas, senhas, mas jamais de sentimentos.
A minha vida, me é contada como se fosse a história de um estranho que mora no apartamento ao lado. A minha própria história se vai perdida, mas ali, no maio daqueles vultos de lembranças, eu ainda consigo enxergar a dor, a doçura, a euforia, as saudades que senti.
Admito que tenho inveja, de quem sonha com uma casa de pé, de carro do ano e roupas caras. Isso tudo parece palpável. O que eu quero talvez nem exista. Seria eu bem mais feliz se pudesse parcelar a paz em doze no cartão.
Fico olhando para os casais embriagados, passionais, que brigam se descabelam, fazem ameaças de vida e morte e, no instante seguinte, se beijam loucamente. Eu tenho uma inveja tão grande de quem não pensa no sentido das coisas, de quem não remói, não digere, de quem não guarda nada além de objetos.
Eu tenho inveja das pessoas imediatistas que comem quando há fome, bebem quando há sede, ligam quando há saudade. Eu sou do tipo cansado que antes da primeira mordida sofre conflitos, lembra de viagens, pensa em quem não está comendo, conta as calorias e se pergunta quem inventou o tomate seco. Eu bebo quase me afogando, brinco com a garrafas, leio rótulos, eu me molho como uma criança sem coordenação, penso na pedra que vai se formando nos meus rins, na infância, nas aulas de português. Eu como, bebo e penso demais.
A minha mente é inquieta e barulhenta. Nada resolve, nada a cala. Nem remédio, nem meditação. A minha mente é carente, conversadeira, é moça nova, velha maluca. Lá vou eu dormir e ela continua tagarelando. Eu tenho profunda inveja de quem tem a alma muda, monossilábica, alma antipática. Das mentes que não cantam Roberto Carlos, Reginaldo Rossi e outros. Eu tenho inveja, inveja das grandes, de quem tem a ignorância como aliada. Tenho dito!