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Blog do Vavá da Luz

O turismo que sobe montanhas e afunda a consciência

Por Alessandra Lontra

Existe algo simbólico e profundamente perturbador no fato de a montanha mais alta do mundo estar sendo associada ao lixo humano. O Everest, ícone de superação, passou a ser citado como exemplo de degradação causada por quem busca a natureza como troféu, não como território vivo. Quando até o topo do planeta acumula resíduos, talvez o problema não esteja na montanha, mas na lógica que guia parte do turismo contemporâneo.

O que acontece no Himalaia não é um desvio isolado. É apenas a versão extrema de um comportamento que se repete em trilhas, parques, serras e áreas naturais em diferentes escalas. O turismo de aventura cresce, o discurso do ecoturismo se espalha, mas a responsabilidade ambiental continua ficando pelo caminho, junto com embalagens, restos de comida, plásticos e uma perigosa sensação de que a natureza sempre dará conta.

Criou-se a ilusão de que basta estar ao ar livre para que uma atividade seja automaticamente sustentável. Não é. Sustentabilidade não nasce do cenário, nasce da gestão, da educação, da regra clara e do compromisso coletivo. Sem isso, trilha vira passagem, território vira consumo e paisagem vira descarte.

Em muitos municípios, a cena se repete com inquietante normalidade. Trilhas são abertas sem planejamento. Experiências são vendidas sem estrutura. Não há política de gestão de resíduos, nem orientação adequada, nem fiscalização contínua. O turismo é celebrado quando atrai gente, mas ignorado quando exige cuidado. O lixo aparece como consequência previsível de uma escolha política que prioriza visibilidade e não permanência.

A população local, frequentemente excluída do processo de construção do turismo, também se afasta do sentimento de pertencimento. Quando ninguém explica, ninguém envolve e ninguém cuida, o território deixa de ser valor e passa a ser apenas espaço. E espaço vazio, na lógica da negligência, vira depósito.

O visitante não está fora dessa equação. Buscar natureza não concede salvo-conduto ético. Aventura não suspende responsabilidade. Levar o próprio lixo de volta não é virtude, é obrigação. Respeitar regras não empobrece a experiência, qualifica. O verdadeiro espírito da aventura não está em deixar marcas, mas em atravessar sem destruir.

O Everest chama atenção porque é extremo, visível e simbólico. Mas o alerta que ele emite é válido para qualquer trilha esquecida, qualquer cachoeira sobrecarregada, qualquer destino que confunde turismo com ocupação desordenada. O problema não é a quantidade de visitantes. É a ausência de consciência coletiva antes, durante e depois da visita.

Se o turismo quiser continuar se vendendo como aliado da natureza, precisará abandonar o discurso confortável e assumir escolhas difíceis. Planejar, limitar, educar, fiscalizar e envolver. Caso contrário, continuará subindo montanhas enquanto afunda princípios.

A natureza não é cenário de passagem. É herança. E todo lixo deixado numa trilha revela menos sobre quem passou e muito mais sobre o modelo de turismo que se escolheu sustentar.

Alessandra Lontra é jornalista multimídia especializada em Turismo, mercadóloga e turismóloga provisionada pela ABBTUR. Com mais de 40 anos de atuação estratégica, é referência nacional em inovação no setor, com forte atuação em governança, roteirização, comunicação digital e inteligência artificial aplicada ao turismo. Lidera o portal Ale Lontra – Notícias em Movimento para um Turismo Além do Óbvio.

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