Leva-se da vida a vida que se leva
As primeiras letras ele não sabia que estava assentando; talvez nem as últimas, mesmo que a memória do paraíso, que lhe fora tão íntimo, ainda remanescesse nos testes dos perdões.
Era um menino treloso lá de Mauriti, aquele que passava por ali, de vez em quando, procurando passarinhos, com um “xaprão” nas mãos, montado num jumento de lote. Os bichinhos enfeitariam o viveiro da casa dos pais dele, despertando a aurora em sinfonia.
Ali ele deixou as primeiras letras — e o nome cheio de variações: de Irapuan saía fácil para Aripuã, Iripuã, Arapuá, Irapuá ou outras possíveis.
Levava o cansaço à exaustão quando chegava em casa, aos “cafuis”, mal almoçado e esfomeado ao jantar.
Não fosse pelas encomendas — Pintassilgo, Canário, Bigode-Careta, Sabiá, etc. — ouviria do pai uma prédica antes da surra das horas e, enfim, uma ameaça de jejum (que era quebrado por Tia Iolanda às escondidas):
— O galo onde canta, janta!
O resto do nome ele foi completando com aplicações de injeções de penicilina (aquele milagre recém-descoberto) em doentes desenganados, cujas salvações lhe eram mais creditadas do que ao acidental de Fleming.
Nesse tempo, já se sabia que o filho treloso e briguento do Dr. Oscar Fernandes Sobral era também um “dotô”. E, como tal, já se apresentava mais garboso, educado e solícito.
É desse tempo o gosto pelas armas e o conserto das lamparinas que sempre levava aos forrós.
Por ali, o guapo mancebo namorador esticaria o corpo à terra onde os pais moraram antes de chegar ao Ceará — e onde ficaram muitos parentes, especialmente aquelas primas lindas, onde a beleza das atrizes do cinema bebia inspiração.
Com os recursos auferidos nos trabalhos farmacêuticos e já se encaminhando à prótese dentária, ele montou um belo guarda-roupa, incluindo a famosa “roupa de borracha” e uns perfumes franceses, e foi pra Jatobá, montado num burro baixeiro e muito bom, que alugara de um amigo e paciente dos seus serviços.
Estava completando o nome.
Na estrada, acompanhado da solidão que o sol (ou a lua) lhe concedia a miragem de si, ele cantava as músicas de sua época, sempre com ênfase num louvor à coragem, ao sertão e a Deus.
Lá ia ele formando o nome melodicamente:
“Ó que estrada tão comprida
Ó que légua tão tirana.
Ah! Se eu tivesse asas,
Ainda hoje eu via Ana.”
Parava sempre — fosse para o café e o cigarro, fosse para atender alguém.
Passando ao largo, nos instantes de areia fina, terra de mandioca, via a Serra dos Três Irmãos e pensava no tesouro de Pinto Madeira, que um dia lhe enricaria, conforme se prometera no universo de aventuras e magia em que vivia.
Em Anauá, o Espírito Santo, a meio caminho, a parada sempre era mais demorada: fosse para uma refeição necessariamente acompanhada de um trago às conversas, fosse apenas para descanso.
E a estrada ia tomando o nome.
No Horebe, fez tantos amigos que preferia reuni-los no mercado para completar o trecho antes de descer a serra.
Talvez, a cada metro, houvesse histórias para serem contadas — ao sabor de qualquer faixa etária.
Era fascinante embarcar nas audições. Parecia, mesmo, que ele trazia aqueles cordéis à sua vida e àquela região. O mundo todo não cabia no sertão, de tanto ele ser.
Hoje, sem dúvida, eu sei que a última letra do nome ele resolveu colocar lá na divisa, quando, velhinho, inventou de dirigir um carro em alta velocidade e entrou na mata, escapando por pouco de ser atingido por um galho de um pé de pereiro que o parou — mas ficou um pouco acima da cabeça, no teto do carro.
Quando meu sobrinho Tiago falou-me que o deputado Chico Mendes, um grande amigo da família, encaminharia um projeto com o nome dele — papai — para a estrada que liga a Paraíba ao Ceará, entre os municípios de Horebe e Mauriti, eu pensei na escrita do destino. Ao Chico, minhas homenagens de gratidão.
Fiquei pensando no merecimento daquele protagonista contador de histórias.
Pensei nele distribuindo remédios e favores (como os beneficiários chamavam), naqueles partos repetidos — coincidentemente, da mesma mulher — quando ele estava passando.
Era, por assim dizer, a estrada de Jericó.
A Assembleia da Paraíba aprovou. Aos deputados e servidores, os meus agradecimentos de filho — mas, especialmente, de um servidor que trabalhou na Casa por muitos anos.
Por fim, hoje, dia 12 de novembro de 2025, poucos dias depois dos dez anos que papai nos deixou para voltar ao paraíso de suas histórias, o governador da Paraíba, Sr. João Azevêdo, sancionou a Lei nº 14.098, de 11 de novembro de 2025.
Ao deputado Chico Mendes, a Assembleia e ao Governador, os meus sinceros agradecimentos. Ficou a marca. Eu não esquecerei.
Quando eu passar na estrada, sei que estou pisando no nome dele, cercado de mel.
Estou falando do meu pai, que agora é o nome da estrada por onde sempre passou: Irapuan de Vasconcelos Sobral.
