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O Leão de Pandora (Para Poe e Wilde) (Irapuan Sobral          )

 

Deus é amor, pois Deus só é Deus porque não se repete.

Imaginava a vida enquadrada sob os pincéis e as tintas. Mesmo as cores eram-lhe obedientes. Tudo era o quadro.

 

Chamava-se Leão, e sabia de Campaspe, por Apeles, à encomenda do Grande.
Insistia em domar o amor na forma, desconsiderando que o amor é uma desigualdade que é preciso preencher em conexão perfeita.
Tinha um reinado e, como o nome exigia, era rei de si mesmo.
Nunca pintou mais de uma tela.

Um único retrato feminino, fixado na parede do ateliê, mutava conforme sua vontade. Quando se encantava por alguém, o rosto no quadro se alterava: um gesto, um traço, um tom de olhar. Cada mulher da tela, vendo a imagem, tentava se imaginar no que via. Nunca era o suficiente. O quadro sempre a ultrapassava. Ele pintava recolhendo pedaços da perfeição ao amor.

Leão não as amava. Amava o que via nelas — e só via o que queria pintar. Elas passavam do salão às cirurgias, como pinceladas subjetivas do desejo dele.

A perspectiva de cada uma ver-se no quadro queimava o chão num alfabeto de promessas interrompidas, ciúmes e entregas não transferidas: Ana, Beatriz, Catarina, Diana, Esmeralda… Neuza, Odete, e…
Mas veio Pandora que não quis ver o retrato; apenas amou. E, contra sua própria natureza, Leão sentiu-se amado.

Foi então que o quadro parou de mudar.
Por semanas, ele tentou modificá-lo: um sombreado aqui, um vinco ali — e tudo voltava ao estado anterior. A tela, que antes obedecia, agora era obstinada; insubmissa; real.

Pandora dizia, rindo, que ele estava ficando bonito no reflexo da moldura, como se o quadro fosse, agora, um espelho. Talvez, mesmo, o espelho positivo que, por suposto, existe no paraíso.

Leão não percebeu o aviso.

O “passe-partout” ao redor da imagem — antes invisível — agora parecia crescer. Não em tamanho, mas em peso. Era um horizonte de eventos: a borda entre o artista e a imagem que, finalmente, não era dele.

Na última noite, Leão tocou a moldura. Um calor o envolveu. Não se ouviu grito, nem estalo — apenas o silêncio de quem enfim aceita ser retrato.

Na manhã seguinte, havia duas figuras no quadro: uma mulher, intacta, e um homem, de joelhos, sorrindo com os olhos de quem enfim viu.

E o quadro parecia exposto na eternidade. Nada mais havia.

Na base da moldura, em letras miúdas, lia-se: Quando você termina o desenho da pessoa amada, precisa estar pronto para ser amado. Se não, será dissolvido fora de si.

 

 

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