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Assim se passaram dez anos

Há dez anos, no dia 5 de novembro, meu pai partiu.
Desde então, tenho certeza de que o céu ficou mais barulhento — e mais afinado.

Papai — Músicas etc.

“A força que o amor tem
Não há quem possa vencer,
Dá coragem ao homem fraco,
Perde o medo de morrer,
Fica veloz como vento,
Cria ferida por dentro.
Quem está fora não vê.”

Aprendi com papai a valorar o querer, como a liberdade — no grau do sublime.
Meu pai nunca mediu as consequências das suas realizações, nem as hierarquizou em maiores ou melhores.
Tentou, com êxito — salvo uma ou duas exceções —, dominar o tempo, ouvindo suas músicas da infância à adolescência.
Era quase divino o seu semblante folheando velhos discos de vinil, em busca de uma capa que guardara, antigamente, na parede da memória.

Compartilhei com ele, em muitos sebos, o garimpo de Nuvens Pardas e Perdão, Emília.
Perdão, Emília eu cantei pra ele, repetindo o que ouvia, após comprar o disco numa livraria em Brasília.

Cansado da busca, encarregou-me de garimpar nas bibliotecas um tal “Discurso Dinamite”, que teria sido proferido por um certo Tenente Gweyer de Azevedo, no Clube Militar, em 1922, contra o então Presidente da República.
Eu terminei também cansado da busca, depois de ligar pro próprio clube e receber a informação de que o tal discurso nunca existira — e que fora invenção de um pasquim editado, à época, no interior do Nordeste.

Minha explicação não o convenceu:
— Eu tinha o jornal, Irapuanzinho!
E passava a dizer partes lembradas do discurso.

Quando Deus o levou para compartilhá-lo com os seus anjos, um deles — que decerto queria comungar alguma história — veio e derrubou aos meus pés um livro da minha biblioteca, no qual estava o discurso completo.
Era História Militar do Brasil, do historiador comunista Nelson Werneck Sodré. Nem consegui mais ler, mas vou levá-lo de memória para o endereço dele no céu.

Ficamos nos devendo, para quitação no Paraíso (queira Deus obedecer às súplicas dele e da minha mãe, de Oscar, de Marah, de Paulinha e de Bilinha, para que eu seja aceito entre eles), o dobrado Sargento Calhau, que ele nunca aceitou ser A Canção do Marinheiro.
— Eu tocava outro, na trompa, na Banda de Mauriti, Irapuanzinho. Não são o mesmo.

Também estão no débito dois perfumes: Ma Griffe e um outro ainda não encontrado, porquanto a pronúncia não era traduzível ao léxico francês. O primeiro eu já consegui. Levá-lo-ei quando for, em um paladar sentido.

Fomos à Carrapateira para ele receber um presente do velho Galdino: um mosquetão. Lembrava-se dos tempos no Exército, em Fortaleza, que ele jurava ter servido. Ele desmontou a arma, enquanto contava uma história da façanha de ambos — ele e Galdino — em busca de um “cara” que perturbava a paz na região.

Consertava lâmpadas a gás, daquelas usadas nos forrós. Eu encontrei uma idêntica à que levei certa vez pra casa de um senhor Ventura, que morava perto da cadeia de Jatobá.
Comprei e o presenteei. Não sei onde foi parar aquela luz de presente. Decerto, ela aparecerá luminosa na vereda que ele já abriu no Paraíso.

Também faltou uma botija que ficamos de cavar na Serra dos Três Irmãos, lá na divisa da Paraíba com o Ceará, na estrada onde passávamos sempre, quando íamos para Mauriti — hoje batizada com o nome dele. Tinha sido guardada por Pinto Madeira, na Insurreição do Crato, à época do Império.

— Se acharmos, Irapuanzinho, vamos ficar ricos.

Falava de rico com essa abundância de valores espirituais, creditado no céu que era. Imagino-o olhando o saldo celeste e rindo o seu riso eterno — cheio de misericórdia.

Há um relato de um parto, lá pras bandas do Açude de Boqueirão, tão fascinante — desde a viagem até o procedimento —, que é um livro em si. Deus só soube dos detalhes quando ele chegou lá, apesar das orações que lhe foram remetidas para que a mulher não morresse. Maria, a Nossa Senhora, mãe de Cristo, resolveu “ad referendum”. Deus deve ter homologado presencialmente.

Até o sabor de um peixe cozido à beira de um açude provocava um alvoroço à realização.
Ele formava tudo para tudo acontecer, especialmente lembrando do pai dele, Oscar, que, por ele, merecia degustar aquele peixe.

Quando comprou o primeiro carro, dizia:
— Se o papai fosse vivo, eu levaria uns peixes desses pra ele, agora.

Meu pai era do mundo — que ele vivia encantando. Na minha lembrança, meu pai não tem dia: meu pai tem vida — e vida eterna.

Em outro parto, ele foi além do infinito. É contado assim:

Aleluia

“O esplendor da luz perpétua!”

Ele é padrinho de uns trigêmeos, cujas luzes Deus lhe permitiu acender.
Deus o fez corajoso e definitivo, como Lucas — o evangelista que acompanhava Paulo e que Paulo tratava como “médico estimadíssimo”.

Oscar, meu irmão, então estudante de Medicina, no Ciclo Básico, conta que foi chamado a auxiliá-lo no parto da senhora Aleluia. Sem as indicações de pré-natal que socorrem hoje a obstetrícia, ele desconfiou do tamanho da barriga da gestante. A mulher chegara à maternidade para ser atendida como urgência.

Iniciadas as providências, ele — que deve estar me acompanhando no texto — aplicou aquelas injeções de nomes estranhos aos meus ouvidos e começou as manobras. Nascido o primeiro, notou que havia outro. A apresentação já não era de crânio, ou cefálica, como ele dizia.

Sem aparentar nervosismo, tentou um anestésico mais simples e conseguiu — não sei bem se foi êxito ou tecnologia divina — “pegar o pé bom”. Foi pegando e falando pra Oscar, com o ar de vencedor, sobre esse tal de “pé bom”.

Nesses instantes, Deus ria.

Puxou o segundo.
O despertar da mulher e a situação visual dela continuavam intrigando-o.
Ele voltou aos toques e gritou:
— Tem outro! Meu Deus!

Deus atendeu.

O terceiro foi mais rápido e veio à luz.
Ele olha para a mulher e diz:
— Minha senhora, como é que a senhora faz isso? Era pra estar aqui há muito tempo! A senhora deve três bebês!
A mulher disse que morava longe, no sítio, e não tinha onde ficar.

Deus olhou pra ele.
— E como vai fazer com esses três bebês?
— Não sei, seu Aripuã. Deus e meu Padim vão me ajudar.

Nem confirmo, mas creio: essa mulher passou um bom tempo lá em casa.
É que lá em casa era o céu.
E Deus estava com ele.

Há, também, o caso dos gêmeos xifópagos. Mas é uma outra história – mais demorada.

Poemas para Papai

Melancia

Com a falta de harmonia, corpo e alma se acusam mutuamente na vã tentativa de uma desculpa — e, quem sabe, uma solução. A vida perde o voluntarismo que lhe caracteriza, e a gravidade puxa com mais força, como se quisesse enraizar as pessoas. É o tempo. É aquele tempo do soneto do Padre Antônio Tomaz: Contrastes.
A nitidez da cena não é mais, e apenas, uma questão sensorial, mas, sobretudo, uma memória.
Papai não é um memorialista arquivado. Quando lembra, é para comparar. Aquela aventura inicial, contada no Diário Póstero, foi o longa-metragem que deu origem à série.

Alguém chegou pra ele e falou:
— Caroço de melancia é afrodisíaco.
Ele não a dispensava em qualquer hora do dia — e não mais metralhava os caroços contra alvos, pessoais ou não. Até ser questionado sobre efeitos colaterais – e desistir.

Melômano

Como todo poeta, era melômano — expressava-se em melodias. Conhecia e chegou a ter os discos dos cantores preferidos das épocas que viveu.
Ele usava a música como relógio, no tipo: “Com essa música conheci fulana”; “Certa feita, em um cabaré (ou bar ou festa) eu ouvia essa música e…”
— Humm! Essa música me lembra, como se fosse hoje…

Num estalar de dedos (indicador e maior), ele despertava a vida que lhe era latente, pulsante. Despertava quem só aprendeu a viver de sonhos. Papai não viveu: ensaiou um musical que passará no Paraíso. Nós continuamos sem entender nada, porque estamos no backstage.

Ah! O poeta compartilhou comigo os versos mais belos da sua antologia mnemônica. Sempre que aprendia um poema novo, ou lembrava de um antigo, vinha a mim para os nossos desafios.
Há uma biblioteca perdida do pai dele, meu avô Oscar, onde ele lia de tudo. As antologias eram as preferidas. Uma delas está guardada como relíquia entre os meus livros: Ceará, Terra da Luz. Com qualquer insistência, ele seria capaz de recitar páginas inteiras do livro, especialmente dos trechos de Iracema, de Alencar, de onde herdamos o nome que carregamos como imagem real do que somos.

Ainda consegui gravar recitações dele, mas perdi um soneto parnasiano feito para uma amada, ainda na escola Frei Xisto, em Mauriti, Ceará, quando adolescente. Quase um acróstico com o nome dela, que está numa foto feita na escola.

Muitas vezes, disputamos e procuramos juntos poemas e livros numa praça de sebos que havia em Recife.
A mais longa porfia, no tempo e no espaço, deu-se numa viagem de João Pessoa para Jatobá. Cada um pagaria o verso recitado do outro, sob pena de uma cachaça, na primeira oportunidade, na estrada.

Quase bêbados, ele deixou para depois de Sousa, há poucos quilômetros de Jatobá, o começo da recitação do verso “A história de Mariquinha e José de Souza Leão”:

“A força que o amor tem
Não há quem possa vencer,
Dá coragem ao homem fraco,
Perde o medo de morrer,
Fica veloz como vento,
Cria ferida por dentro.
Quem está fora não vê.”

Terminou na porta de casa, com aquele riso do vencedor que só quer ser vencido, e me exigiu tomar uma cana grande na cozinha de casa.
Outro dia, na casa da minha irmã Marah, sob os olhos dela, de Paulo e de William Pinheiro, li “O lenhador” e “O morroeiro”, de Catulo da Paixão Cearense.
Mas só os primeiros versos de cada estrofe. Ele completava tudo — e contava quando, como e por que aprendeu cada um.

Os livros do Maçon, Mestre Instalado, Grau 33, eram em segredo. Nas vezes que li escondido, e trouxe alguma notícia, paguei o preço de um olhar repressor.

Poemas para papai

Ao meu pai, Irapuan

Desde quando nasci para este mundo,
despedi-me do céu onde vivia,
aluguei minha alma à fantasia,
e pensei que viver é ser profundo.
Envelheci, imaginando-me fecundo,
mas perdi, para mim, como ninguém.
O anjo que me guarda, desde o além,
escreveu as razões na minha palma:
a criança que alugou a minha alma
não devolve a minha posse a ninguém.

Papai (I)

Meu pai é mais que amigo,
é a fé a que eu me entrego,
a coragem que carrego
e guardo sempre comigo.
É força contra o inimigo,
é um amor firme e forte
que não depende de sorte,
mas da liberdade plena;
que seja sempre serena
até na hora da morte.

Ao meu pai Irapuan
guardo o meu gesto final.
Quero ser como ele é,
sem diferença, igual.
Pra me levar em lembrança
ao Deus do meu ideal.
E seremos iguaizinhos em nome, etc. e tal.

Saudade do Papai

Quando acordo com saudade de meu pai,
nem me importa em que terra posso estar.
Tenho uma urgência dele me abençoar,
perguntando, pelo santo: “Como vai?”

E eu penso em ligar por telefone
para os números que ficaram na agenda:
ou de casa, ou da rua, ou da fazenda,
que não mais me atendem em seu nome.

Então, eu fico em silêncio, desolado,
lavo o rosto com as lágrimas, calado,
e vejo em sonhos como é que ele viveu.

Me respondo, sem saudade e com alegria:
o meu pai há de ser esta energia,
e não mais a matéria que morreu.

O sonho

Quando ainda era criança, em um sonho,
o meu pai se assistiu desencarnar;
vendo toda a sua matéria terminar
a história de um menino bem medonho.

Esse sonho era a linha das estrelas —
como veem os astrólogos lá no céu.
Tinham rostos encobertos com um véu
e umas estradas que ele não podia vê-las.

Ele, então, escolheu pintar a cena,
resolvendo, de uma vez, certo dilema,
que é viver — ou deixar a vida ir.

Foi mostrando, ele mesmo, aqueles rostos,
e viveu ao seu modo e aos seus gostos
até na hora da estrada de partir.

Papai (II)

Irapuan, ao chegar no paraíso,
foi recebido pela vida que viveu.
De fecundo, até quando envelheceu,
a liberdade lhe servia de aviso.

Do menino ao homem — e no rapaz —,
foi-se formando, cuidadosamente,
uma alma iluminada que, à gente,
resplandecia a mais eterna paz.

Dos trabalhos e amores tão sonhados,
entre nós ele será, dos mais lembrados,
como aquele a quem Deus se dedicou.

E, no céu, como o mais novo dos arcanjos,
cantará com a força dos arranjos
que Jesus é da vida o Salvador.

Ângelus (I)

Papai rezando o Ângelus,
quando batem as seis horas,
a noite quase chegando,
a tarde já indo embora.
É Jesus o anunciado,
Filho de Nossa Senhora.

Ângelus (II)

Quando o anjo anunciava a Maria,
na minha casa o meu pai sempre rezava,
e um coro de anjos respondia
nas perguntas de orações que ele fazia.

E, quando o Ângelus, em reza, terminava,
o meu pai ia correndo pra janela,
levantava as mãos aos céus, como uma tela,
e de Deus e da Virgem se apiedava

que a nossa família protegessem,
que de nenhum de nós se esquecessem,
naquela estrada de viver que caminhava.

Vejo meu pai, agora velho e diferente,
protegendo, do seu modo, a mesma gente
que à força dos seus braços sustentava.

Encomendado pra saber do paraíso

Encomendado pra saber do paraíso,
papai levou sua vida com a alma.
Vão dividindo — ele e ela —, com a calma,
de relatar para Deus — ao Seu juízo.
Eu recebi, com a chuva, um aviso:
estou no céu, sem o nome que usei,
aí na terra, ao chamado de vocês.
Fui recebido por José e por Maria,
e, como eu disse a você naquele dia,
eu estou salvo pela fé com que rezei.

Lembranças do Futuro

O meu pai sempre gastou, em fantasia,
a realidade com que a vida lhe marcou.
Desde nascido, com firmeza, ele abraçou,
com a mesma força, a tristeza e a alegria.

Mas ele sempre assim se destacou,
por uma saudade marcada na memória,
preferindo fazer de sua própria história
uma lembrança que o futuro lhe encantou.

Quando amanhã o sol lhe for presente,
ele se jacta de uma noite já ausente,
se o presente se fez noite de amor.

Construindo este universo tão profundo,
o meu pai está vivendo, neste mundo,
aquele mundo que ele tanto desejou.

Papai para os meus irmãos!

Nessa noite que passou eu tive um sonho,
o mais sonhado que um dia alguém sonhou:
eu sonhei com o meu pai — meu professor —,
muito alegre; sem tristezas, bem risonho.

Eu o via cercado dos amigos
na esquina da estação rodoviária;
ele, ao centro, explicando a batalha
que, com a morte, vencera inimigos.

Espantado, eu olhei no coração
e senti o calor da pulsação
que em seus olhos de riso avistei.

Ele olhou-me, tão feliz e satisfeito,
que folgou-me na fé e no respeito,
ao falar: “Podem crer, ressuscitei!”

Irapuan

O índio que nasceu antes de mim
deixou seu nome pra rimar este poema;
será ele o mesmo a refazer a cena
repetida muito antes deste fim.

O bravo chefe — e filho de Tupã —,
ainda corre armado pelo seu lugar;
e, na sua guerra, é quem vai contar
esta bela história de Irapuã.

A virgem Iracema é a sua terra,
em cujo ventre se prepara a guerra
de juntar a cultura à outra irmã.

O guerreiro é doce, cercado de mel;
ele é a abelha sob o mesmo céu,
abrindo suave o sol da manhã.

Epílogo

Meu pai foi o tempo, mas sem relógio. Foi o riso da casa, a fé dos enfermos, o som do sino que não cessa. E é — porque continua sendo — o meu jeito de olhar o céu e acreditar.

“Eu precisava tanto conversar com Deus”, mas Deus é o todo que, em qualquer parte, está inteiro. Eu preciso é me encontrar — ou me reencontrar, na maiêutica desse filósofo-parteiro, que voltou para Deus.

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