Pular para o conteúdo

O Führer do Tempo

Feiticeiros, dragões e heróis vivem do sacrifício de quem os esquece; mas sempre voltam juntos.

O governo que se contém é republicano; o que se contempla, totalitário.
— Do Livro das Indiferenças

Meu irmão Neto Sobral pediu-me o livro de Peter Burke, Ignorância: uma história global. Nele se aprende que a ignorância não é falta de saber, mas produto de uma escolha — e que se fabrica com os mesmos instrumentos do conhecimento: técnica, propaganda, prestígio.

A história do século XX prova que a mentira, quando bem iluminada, sempre parece verdade.

Dias depois, Zé Euflávio enviou-me um texto sobre uma mulher que, ao se despedir do amado que partiria em viagem, contornou com carvão a sombra dele na parede para guardá-lo na memória. A ausência fora transformada em lembrança — na imagem.

Pensei na minha mãe, que – ao contrário do meu avô paterno, Oscar – detestava fotografias. Dizia que a máquina roubava a alma. Nunca posava por agrado, nem mesmo em festas. Achava que a imagem tirava da pessoa algo que não se devolvia depois. Talvez tivesse razão: toda imagem substitui o real por sua caricatura.

Borges e Maria Kodama, em Totem, no livro Atlas, narram a história de um homem que esculpiu a figura de um deus e, com o tempo, seus descendentes passaram a adorá-la, esquecendo que fora feita por mãos humanas. “A imagem não reflete”, escreveu Borges: “usurpa.” E, desde esse instante, o criador passou a venerar o que fabricou.

Mais impactante é o documentário sobre algumas imagens de Hitler. Entre elas, a famosa fotografia de um ato em Nuremberg, em que o ditador surge envolto em névoa, como se emergisse de uma entidade, num estado de epifania. Mas o que se vê é apenas o vapor da respiração de milhares de pessoas reunidas em um salão fechado, em tempo de frio.

O fotógrafo Heinrich Hoffmann transformou o acaso físico em milagre político. Ele era o arquiteto visual do culto ao Führer. Usava as recém-lançadas Leica — câmeras leves e silenciosas, perfeitas para capturar o líder sob qualquer ângulo.

Mais tarde, a cineasta Leni Riefenstahl, em Triunfo da Vontade, levaria essa estética à perfeição técnica: concebeu o movimento circular da filmadora, que girava em torno de Hitler para dar-lhe a aparência de onipresença — visível de todos os ângulos, como um deus do enquadramento.

O nazismo nasceu dessa fusão entre fé e técnica: a mentira filmada em alta definição.

A história avança, mas os truques são os mesmos. A imprensa, o rádio, o cinema e a televisão moldaram o século XX. Agora, a internet, as redes sociais e a inteligência artificial moldam o atual. Mudaram as ferramentas, não o método.

A manipulação perdeu o centro, mas ganhou velocidade. O público virou produtor e vítima: cada um edita a própria mentira, como se a realidade fosse uma selfie corrigida. Repetem-se também os sintomas: a cultura do cancelamento, os adjetivos que substituem ideias, as divisões morais entre “nós” e “eles”. Até a arte oficial voltou — da mesma forma; como voltaram a imprensa e a academia oficiais, oráculos do Estado.

Vivemos a anarquia oficial, em que os poderes do Estado podem tudo, mesmo sem base legal. A corrupção já não escandaliza; apenas troca de lado. E a tensão diária — nas redes, nas ruas, nas falas públicas — desenha um estado de pré-guerra, em que o ódio é entretenimento, e o ruído, substituto da razão.

Sartre temia que o nazismo voltasse disfarçado. Vergílio Ferreira lembrava que o esquecimento é a forma mais perigosa de ignorância. Pois voltou — elegante, digital, governista — e se vende como o contrário do que é. A velha intolerância reaprendeu a posar para a câmera. A técnica, mais uma vez, veste o engano de verdade.

O livro de Burke, o texto do meu amigo e a velha fotografia dizem a mesma coisa: a ignorância é uma escolha coletiva, e a imagem, seu altar mais eficaz. A história não se repete como farsa — repete-se como distração.

Mas há um sinal novo, mais grave que os anteriores: o desligamento completo da geração atual em relação à que a antecedeu. O saber inverteu-se. Agora está sob o controle dos jovens e das máquinas. Vovô que peça ao netinho para ligar a TV ou para acessar os serviços bancários.

O tempo da experiência foi substituído pelo tempo da atualização. E o conhecimento, privado de memória, perdeu a condição de sabedoria para se sublimar em técnica. Paradoxalmente, estamos voltando, repetindo tudo — de novo.

A mídia tradicional já não consegue divulgar a notícia como surpresa da novidade, mas com o atraso de fatos já anunciados, debatidos e esgotados nas redes sociais. A política e a cultura se tornaram espelhos invertidos: a cultura política e a política cultural do Brasil oficial e de seus acólitos e agregados continuam sendo a vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda. E, se mantido esse ritmo, acabarão saindo desse universo delirante no último pau de arara.

Eis o contraste essencial: o governo que se contém é republicano; o que se contempla, totalitário. Melhor diz O Livro das Mil Noites e Uma Noite: “O melhor governo governa mais a si do que ao povo.”

Uma cena do filme Uma Mulher em Berlim, uma voz entre os escombros pergunta, com inocência e espanto: “Onde está o nosso Führer?” Não era ironia: era desamparo. A fúria vingativa dos soldados soviéticos, que violavam e saqueavam em nome da vitória, repetia as atrocidades nazistas cometidas na Rússia e em toda a Europa Oriental.
O mundo, sem a mentira, não sabia onde ficar de pé.

Essa pergunta — “onde está o nosso Führer?” — carrega um engano ainda maior: o de imaginar que as tiranias pertencem apenas aos tiranos. Mas nenhuma delas sobrevive sem uma cumplicidade difusa, social, nacional.
A responsabilidade não é de um homem, mas de um povo inteiro que se entrega ao conforto da obediência. A ignorância não está só nos que mandam — está, e com mais força, nos que consentem. Convém desconfiar dos governos que escolhem o povo que querem governar e das notícias, informações ou criações artísticas que agradam governos (esses últimos ambientes são, naturalmente, de oposição, contestação, dúvida).

Em outro texto, Deutsches Requiem, Borges deu voz a um nazista condenado à morte, que reconhece o inferno que ajudou a criar. Antes de morrer, o personagem escreve:

“Que o céu exista, embora o nosso lugar seja o inferno.”

É a frase mais terrível e mais humana que já se escreveu sobre a culpa — a aceitação do abismo como destino, o triunfo final da ignorância sobre a consciência.
O nazismo é o governo do governo, pelo governo e para o governo; é o poder que se autojustifica e se exibe — um Estado que passa “a se representar a si mesmo”. É o momento em que o poder político deixa de ser representado e passa a se representar. Quando o Estado deixa de servir à sociedade e passa a criar a sociedade que o serve.

A quem lê, eu somente posso dizer: não é bem o que você está vendo.

Por Irapuan Sobral

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *