“Aquele que habita o esconderijo do altíssimo, a sombra do senhor, onipotente, o cobrirá”
Salmo 91
“Deus te abençoe!”, disse Marluce, como quem encerra um rito cotidiano sem imaginar que naquele instante o destino abria uma fenda.
Fátima, sobrinha dela, já à porta de saída, ouviu o chamado súbito:
— Vou com você. É possível?
Era mais que impulso: era o gesto obscuro de um anjo que se disfarça de parente.
Na mesma tarde, em João Pessoa, Paraíba, Charlene, quinze anos, corpo de menina prestes a ser mãe — voltava de ônibus, cansada, trazendo o enxoval da filha ainda não nascida. No banho, a bolsa se rompeu. O sangue na perna foi o sinal terrível. Estava só, sem vizinhos, sem telefone, sem recurso humano. Escolheu não clamar: deitou-se, resignada, como quem entrega o corpo ao tempo. Sexta-feira, 1º de outubro de 1982.
Irapuan, dezenove anos, esposo de Charlene, genro de Marluce, e ateu convicto, deixava o expediente e percorria bares no centro, depois à orla, ostentando certezas sobre filosofia e religião. Sua incredulidade não o protegia do destino, apenas o distraía dele.
Enquanto isso, Fátima — a prima, a enfermeira — atravessava quinhentos quilômetros para entrar, sem cálculo, no desenho secreto dos fatos. Encontrou Charlene em urgência, tomou providências, levou-a à Maternidade Cândida Vargas, onde trabalhava.
Marluce não era apenas a tia que abençoava a sobrinha: era a mãe de Charlene. Como toda mãe, trazia em si o fio invisível que conduz a vida dos filhos antes mesmo da concepção — esse mistério que os homens chamam de instinto, e que as Escrituras chamam de Espírito. Ao dizer “Deus te abençoe!”, foi tocada por algo maior do que ela mesma. Não sabia ao certo por que decidira viajar, mas as linhas das cores a chamavam. E assim permaneceu em casa: o gesto de esperar era também parte da escritura invisível.
Alta madrugada. Irapuan retorna embriagado, toca a campainha, e quem abre é Marluce:
— Você aqui?! Onde está Chachá?
— Na maternidade. Já estava em trabalho de parto.
A frase, breve como sentença, foi suficiente para dissipar o álcool. Irapuan chorou, correu pelas ruas como se tempo e espaço se houvessem eximido dos fatos — rebeldes da ordem. A cada passo, deixava de ser o estudante que opinava sobre o absoluto para se tornar o homem que suplica à misericórdia.
Na maternidade, o guarda o barrou. Nem lágrimas, nem a súplica, nem a influência de um deputado amigo chamado ao telefone (José Lacerda) venceram a muralha da contingência. Denise, esposa do parlamentar, veio e também lhe negou a entrada. A madrugada, então, lhe ensinou que a Graça não é favor de poder nem senha de prestígio.
E foi assim: enquanto ele vagava do lado de fora, dentro nascia Elis, mostrada a ele pela mão de uma enfermeira, como se o primeiro olhar do pai fosse mediado por alguém que não ele.
Dias depois, Charlene voltou para casa. A vida prosseguiu, mas já não era a mesma.
Na universidade, na semana seguinte, Irapuan narrou o episódio. Não como o ateu dos grupos de debates, nem como crente, mas como alguém que soube: a graça não se concede a quem a merece, mas a quem a reconhece. Deus, concluiu, não cabe em fé, dogma ou conceito; é um todo que irrompe em qualquer parte.
E assim, o simples “Deus te abençoe” da mãe revelou-se senha de um enredo maior: as linhas invisíveis que unem viagens, presságios, sangue, corredores, e que não dependem da fé dos homens para se cumprir.
Charlene sempre acreditou que aquele instante não foi apenas de nascimento, mas de ressurreição.
