“No cume calmo do meu olho que vê / assenta a sombra sonora de um disco voador.”
— Raul Seixas, Ouro de Tolo (1973)
Em 43 a.C., Roma vivia um de seus períodos mais sombrios. Após o assassinato de Júlio César, o poder foi assumido por um triunvirato formado por Otávio, Marco Antônio e Lépido. Para consolidar o novo regime e eliminar qualquer oposição, os três instituíram o que a história conhece como proscrições: listas públicas de inimigos políticos marcados para execução sumária, com confisco de bens e perda de cidadania. A mais emblemática dessas vítimas foi Cícero — filósofo, jurista e crítico feroz de Marco Antônio —, cuja cabeça e mãos foram exibidas no Fórum, como aviso aos demais.
Will e Ariel Durant descrevem as proscrições como o colapso do Estado republicano. Em César e Cristo, da monumental História da Civilização Ocidental, apontam que “a liberdade desapareceu não com protestos, mas com aplausos”. Nesse momento, a política já não se pautava por princípios, mas por “ambição e violência legalizada”. A lei deixava de ser escudo e tornava-se arma.
Dois mil anos depois, no Brasil e no mundo, também com o assombro de execuções físicas, renovam-se as formas de proscrição. Elas não apenas exigem gládios nem tribunais. Bastam prints, hashtags, threads – e sentenças virais. Vivemos na era dos cancelamentos oficiosos e oficiais publicados.
O cancelamento consiste em banir alguém do espaço público por opiniões ou comportamentos considerados inaceitáveis. Pode envolver a inelegibilidade para mandatos políticos concorrentes, a destruição de reputações, a perda de empregos, a exclusão de circuitos culturais ou acadêmicos, da publicidade, dos eventos, das listas, dos prêmios, dos festivais. Tudo sem julgamento formal ou legal, sem direito de resposta, sem espaço para contexto ou reparação. Aliás, acabou o debate com diferenças de perspectivas. Há o predomínio de um pensamento único orwelliano, que se julga puro, exclusivo e excludente, e que infectou o devido processo legal. Até a tortura pública e gravada é método.
Comparar esse fenômeno com as proscrições romanas não é hipérbole. As mortes continuam, ainda que muitas venham disfarçadas de exposição, de escárnio ou de acidente. Cícero perdeu a cabeça no Fórum; hoje, outros perdem o corpo — e nem sempre sabemos seus nomes.
Como advertiu o filólogo judeu-alemão Victor Klemperer em LTI — A linguagem do Terceiro Reich, “as palavras podem ser como minúsculos focos de infecção. Uma única palavra pode contaminar uma frase inteira.” E mais: “a linguagem não reflete apenas a realidade — ela a forma, ela a domina.”
No nazismo, esse princípio foi levado às últimas consequências: ao nomear alguém como “degenerado”, “traidor” ou “judeu parasita”, o regime já o sentenciava à morte social — antes mesmo da física. As palavras carregavam chumbo.
No cancelamento contemporâneo, há algo semelhante. A linguagem se arma. Rotulamos com voracidade: “fascista”, “machista”, “racista”, “comunista”, “bolsominion”, “isentão”, “esquerdopata”, “petralha”. Os adjetivos colam como selos inquisitoriais, dispensando a necessidade de escuta. Quem recebe o selo é apagado da arena do diálogo. Executado, não com espada, mas com silêncio, desprezo, sarcasmo.
E como nas proscrições, muitas vezes esse processo atende a uma necessidade mais profunda: a de encontrar culpados para tempos instáveis; a de purgar simbolicamente os medos sociais; a de afirmar identidades num mundo fragmentado.
Há, sem dúvida, causas legítimas que precisam da aquiescência da sociedade contemporânea. Vivemos um momento de revisão histórica, com demandas urgentes por justiça social, igualdade, inclusão e memória. É justo que se cobrem responsabilidades. Mas é necessário vigiar a fronteira tênue entre justiça e vingança, entre cobrança e extermínio simbólico, entre cultura crítica e tribunal sem lei.
A vingança aplicada a vizinhos barulhentos, amores (e até namoros) perdidos, colegas bem-sucedidos, parentes inconvenientes e coisas do tipo está ficando comum — tipo bicho de sete cabeças. Esse comum não pode se tornar norma, nem regra. Há cancelamentos sutis, tão disfarçados que o próprio cancelador nem percebe que o cancelado entendeu. Entendeu que o fascismo não é apenas um adjetivo — é uma cultura.
Os Durant, com sua visão dramática da história, diriam que a liberdade não morre de repente. Ela se esfarela no dia a dia, quando a política se torna guerra cultural, a linguagem vira trincheira e o medo substitui o argumento. É preciso ser claro: nem tudo é política, e nem a política é a única via de acesso a tudo.
Como também advertiu Klemperer, “a linguagem não apenas acompanha o pensamento, mas o comanda; não apenas molda o pensamento, mas a sensibilidade.” Quando nossa linguagem se torna irredutível, militante, excludente, já não resta espaço para o outro — nem mesmo para a dúvida.
As proscrições da Roma Antiga legaram ao mundo uma lição amarga: quando o poder passa a eliminar pessoas em vez de ideias, a República já morreu — mesmo que o Senado ainda esteja de pé.
Hoje, talvez precisemos nos perguntar: quantas repúblicas morrem por dia nos campos de batalha dessa linguagem política?
Os romanos matavam com listas. Hoje, basta um trending topic. E, como ontem, o silêncio das instituições costuma ser cúmplice. A diferença é que, agora, a cabeça de Cícero não está no Fórum — está nos comentários.
P.S. Como o poderoso cancelador exibe um destemor incomum hoje, é prudente lembrá-lo Borges, em O fim, no instante que antecede o duelo entre vingança e memória:
“Uma coisa quero pedir-lhe antes da briga: Que ponha toda a sua coragem e toda a sua manha, como naquela outra de há sete anos, quando matou meu irmão.” Ou melhor dizendo: O que você faz hoje pode ser usado no futuro contra você.