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De Repúblicas –  O quarto porém. Só Deus é verdadeiro (Irapuan Sobral)

Um homem de poucos cabelos lastimava a má sorte na beleza, confiando ao Todo-Poderoso uma solução, nunca tardia. Pelo dito e conhecido, herdara do pai razoável quantidade de haveres, incluída uma biblioteca. Nem nos bens, nem nos livros encontrava alento para o único problema que teve de enfrentar sem êxito: a calvície.

No cabeleireiro, implorava a parcimônia do artesão, rogando improvisados arremedos. Não se enganava. Após o primeiro banho, tudo era a mesma coisa. Passara pelas mãos mais conhecidas, até conhecer a tesoura e a língua de Possidônio, na Vasco da Gama, proximidades do Luzeirinho, no bairro de Jaguaribe, capital da Paraíba.

Ao seu primeiro lamento, o jovem cabeleireiro falou das maravilhas da pasta da flor da carrapateira: um milagre na recuperação do couro cabeludo e no rejuvenescimento dos pelos. De uso externo, não oferecia efeitos colaterais. Bastava aplicar a pasta três vezes por semana, durante quinze minutos, sobre o cabelo — ou o que restara dele. Antes, contudo, dependia de três “poréns”: A flor ser retirada e pisada numa noite de lua cheia;

ser colocada, como uma pasta, pelos três dias seguintes, para curtir no sol e no sereno, em cima de uma telha nova; e que o fiel não tivesse, quando da aplicação no banho, nenhuma imagem ruim no pensamento.

Os poréns eram simples demais e assim não ofereciam obstáculos. A planta era comum na região. A colheita seria fácil. Quanto ao mau pensamento, não se incomodava; o infortúnio capilar não o fizera grosseiro nem raivoso do mundo. Tudo lhe parecia bom e correto sob as ordens de Deus. Disse isso ao cabeleireiro, ao tempo que agradeceu a meizinha, manifestando interesse em aviar a receita.

Quando já prometia boa paga em caso de sucesso, o cabeleireiro insistiu nos “poréns” e, enfatizando o terceiro, mostrou como exemplo um passante na calçada oposta. Era Mané da Manteiga, antigo e barrigudo vendedor de secos e molhados, metido em sua surrada camisa aberta, mostrando a pança obesa encimada por um peito cabeludo salpicado de farinha, que segurava uma cabeça onde se destacavam um rosto de barba malfeita, um olhar enviesado, olheiras separadas por um nariz adunco e orelhas esticadas.

De relance, viu o bruto, mas alegou que nunca tivera o prazer de conversar com figuras do naipe. Despediu-se e foi embora. Em casa, tratou logo das providências e as cumpriu com uma religiosidade moura.

Ao cabo de quinze dias, apontou na esquina do salão Marechal, em cuja porta conversava Possidônio. Reconhecido, ainda que um chapéu de abas largas lhe cobrisse toda a cabeça, o homem sentiu um esboço de fuga do charlatão. Parou-lhe a tempo de deixá-lo despreocupado, debitando tudo ao terceiro porém. Não o cumpriu satisfatoriamente, porque sempre que punha a pasta na cabeça e ia para o espelho, via “Mané da Manteiga”.

Agradeceu a receita e tirou o chapéu para mostrar que já não tinha mais cabelos, mas caminhava para o contentamento final. Aprendeu que “a primeira impressão é a que fica”, aditando às exigências posológicas da meizinha esse “quarto porém”.

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