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Ares brejeiros I e II (Thomas Bruno Oliveira)

Mata do Pau Ferro, Areia-PB - TB

Mata do Pau Ferro, Areia-PB – TB

ATENDENDO AOS ESFORÇOS E DINAMISMO do amigo Julierme do Nascimento, que respira (e nos faz respirar) o Borborema Cangaço, me juntei a ele e ao nosso querido Roniere Leite Soares, que conheci nos bancos da Escola Técnica Redentorista. Ele, um metódico e aplicado professor de desenho técnico, eu um garoto que com quinze anos buscava um norte, régua e compasso epistemológico que me fosse útil nas estradas da existência. Hoje somos confrades dessa instituição que reúne pesquisadores interessados na cultura do nordeste e no cangaço. Nosso destino: o brejo parahybano.  

 

A manhã de domingo estava fria e o sofá convidativo a se entregar àquela preguicinha. É quando Julierme me chega com seu contagiante sorriso e fomos buscar Roniere, que mora no mesmo Bodocongó de minha infância e vendo aquela paisagem me reportei a um tempo muito caro em minhas lembranças, quando andei por ali diariamente para a escola Joaquim Padre Neto da “Tia” Clisneide e faziam moldura a essa lembrança a Feirinha de Bodocongó, o riacho “podre” que hoje a prefeitura transformou em canal, a escola estadual do Severino Cabral inteiramente reconstruída pelo governo, a Igreja Matriz de São Pedro e São Paulo e aquelas pedras de calçamento sempre molhadas por uma mina d’água por ali existente, as mesmas que estavam diante dos meus pés mais uma vez.

 

Seguimos para o Brejo. Os quilômetros que separam Campina de Lagoa Seca todos cobertos por neblina e o viço daquela mata exalando seu perfume cada vez mais forte atiçado pela chuva e os ares brejeiros que insistem em nos beijar a alma. Juracy Palhano o grande benfeitor de um bairro que, nos limites de Campina, preservou uma vegetação nativa admirável. Ele que na década de 1960, no programa da Rádio Borborema “Vesperal das moças”, já reclamava a necessidade de arborização da cidade. Juracy, de lá para cá, muita coisa mudou não foi? Passamos por Lagoa Seca e por Esperança que acordavam timidamente e a mata do pau-ferro com toda sua exuberância nos mostrava que estávamos em terras areienses. Momento em que a chuva deu uma trégua. Visitamos o sr. Assis Guedes e logo seguimos para Alagoa Grande.

 
 

A descida de mais de 400m de altitude foi de um encanto só. A média de velocidade foi tão baixa que parecíamos estar curtindo uma caminhada. Através das acentuadas curvas, identificávamos detalhes sensíveis, expressões da cultura agrícola que nos foi impossível não contemplar. Ao espiarmos as terras baixas que se espraiavam distantes, flagramos em um caminho carroçável à esquerda da estrada um morador com vestes surradas disfarçando fortes músculos, pele escura, atrigueirada, chapéu de palha manchado de terra e em sua lida, tangia uma mula que carregava dois caixotes antigos em madeira, raríssimos de se ver hoje em dia. Saindo da estradinha e tomando o aceiro da pista, bom mesmo era que tivéssemos conseguido fazer um retrato dele, mas não era possível parar na rodovia sem acostamento e ainda mais com uma fila de carros que se formava atrás e vinha sendo paciente com a estrada e conosco.

 

Entramos em Alagoa Grande não pelo caminho habitual, mas por uma de suas saídas. Confesso que fiquei entusiasmado com a oportunidade. É meio que entrar por uma porta alternativa possibilitando um outro olhar, já que a entrada principal ostenta um belo portal em forma de pandeiro, inaugurado na mesma época do Memorial a Jackson no ano de 2008.

Aos 143m de altitude, já com o tempo estiado, paramos na frente do Mercado Público. Ao longe, o que continua sendo de extremo destaque na paisagem são as torres da matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem, bela construção do século dezenove, grande expressão da religiosidade e da fé do povo alagoa-grandense. No restaurante da pousada central, pudemos sentar em um lugar estratégico de observação do centro da urbe. A terra de Jackson do Pandeiro e de Margarida Maria Alves é também de Vitória e Laís do Memorial de Jackson do Pandeiro, do simpático e comunicativo Lacerda Moto, Alfredo Neto (gestor do Teatro Santa Ignêz), do caminhoneiro Isaías e de muita gente boa.

E o que dizer do Hotel Central e do seu restaurante em Alagoa Grande? Duas coisas me chamaram muito a atenção, primeiro foi a azulejaria de suas paredes, um azul e laranja sobre branco que não só enche os olhos como encanta. O dono diz que é muito antigo, que nem sabe quanto tempo tem aquele revestimento histórico. Enquanto a gente conversava, sua esposa preparava um café forte e gracioso, além da generosidade. Digo isso porque ela nos trouxe uma garrafa inteirinha e o que engrandeceu, além da quentura, foi um cuscuz quentinho com guisado de boi, uma iguaria que parece tão simples, mas é de uma riqueza gastronômica incrível. Ela também nos trouxe pães e algumas lascas de queijo assado. Vendo tudo isso, Julierme sorriu, me olhou de soslaio e disse: “Thomas, é como tu diz, é uma riqueza!”. Sorrimos. Roniere também sorriu, esboçando um ar de contentamento.

Envolta a fumaça do café, a imagem que se descortinava além da porta, era um ângulo enviesado da igreja matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem. Observando melhor, se via o largo da praça, um casario bem antigo, arquitetura eclética que lembrava o neoclássico e o art dèco. Esses são detalhes singelos de uma cidade que viveu um auge há quase um século, assim como Areia, Bananeiras e outras cidades brejeiras que tiveram um expressivo apogeu canavieiro e em algum momento, da cultura cafeeira. Bandeirolas juninas balançavam e nos lembravam esse período festivo tão lindo que é o São João. Por ali também vimos quadriciclos manchados de barro, demonstrando o percurso por trilhas da zona rural.

Memorial Jackson do Pandeiro, Alagoa Grande-PB – TB

 

De “bucho cheio”, seguimos para o Memorial Jackson do Pandeiro, uma grande homenagem ao “Rei do ritmo” na terra de seu nascimento. São discos (não todos!), chapéus, cadernetas, fotografias, seu primeiro contrato com a Rádio Jornal (Recife-PE) e uma sorte de conteúdos de sua história. Ficamos encantados com a recepção de Vitória e Laís, duas funcionárias da Prefeitura Municipal de Alagoa Grande que nos receberam com grande simpatia e atenção. O memorial funciona todos os dias graças a uma escala que permite regime de folga dos funcionários, maneira bastante inteligente exatamente pelo fato de que a visita ocorre de maneira mais profícua em fins de semana e feriados. Lembrei da emoção que foi no dia da inauguração em 2008, Neusa Flores, última esposa de Jackson, permitiu a chegada dos restos mortais do nosso Rei, vindos do cemitério do Cajú no Rio de todos os brasileiros. Roniere uniu as mãos como se tocasse um pandeiro e cantou: “Severino “Serrotão”, lá de Campina Grande/ Freqüentava toda dança em Bodocongó/ Na volta de Zé Leal era bem respeitado/ E lá na rua do Arrojado ele estava só/ Certa vez apareceu um tal de “Garrafão”/E topou com “Serrotão” um certo bafafá/ Quatro murro, quatro queda, desapareceu,/Porque “Serrotão” lhe deu mesmo pra matar/ “Garrafão” virou “Garrafa”, fugiu lá de Campina,/ Passou a ser chamado “vidro de penicilina”./Existe no mundo, meu irmão / A lei da compensação”.

 

Voltamos para o carro não por cima da balaustrada, mas pela calçada da pista. Ali vimos um aglomerado de homens, passei sorrindo e espiando quem estaria à disposição de “um dedinho de prosa”, foi quando um cidadão respondeu ao meu “Bom dia”. Muito comunicativo, Lacerda nos ofereceu uma bebida, mas o que nos preencheu foram suas informações. Suas amizades com políticos, gente importante do município, sua afeição aos populares, inclusive uma coisa dita por ele passamos a repetir em tom de brincadeira: “Tem que ter psicologia…”, isso ele repetia insistentemente como um mantra que leva como filosofia de vida. O dono do barzinho é Alisson. Estampava uma camisa do flamengo carioca e servia a todos, além de ver o tempo passar de sua cadeira.

Eu ao lado de Julierme, Caminhoneiro, Lacerda e Roniere - TB

Eu ao lado de Julierme, Caminhoneiro, Lacerda e Roniere – TB

Seguimos com alegria para conhecer outro espaço de memória muito importante de Alagoa Grande, o Theatro Santa Ignêz. Ele é o terceiro teatro mais antigo da Parahyba, construído entre 1902 e 1905, teve em sua inauguração a apresentação de uma companhia francesa. Apolônio Zenaide, Senador à época, usou de seu prestigio para trazer o grupo teatral que veio ao Brasil se apresentar no Rio de Janeiro, São Luís e Pelotas. Aproveitando os “Caminhos do frio”, semana que vem tem mais do brejo.

 

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