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Fora! Fora! Abaixo! Abaixo!

Revoluções podem ser evoluções à ré

Elogiando a Revolução Americana, em uma conversa com amigos franceses, fui prontamente questionado sobre as razões de tanto entusiasmo. Respondi, diferenciando as duas grandes revoluções que fecharam o século XVIII, dizendo que a sucessão de golpes e usurpações, na fase imediatamente posterior à Revolução Francesa, havia assustado e decepcionado até Hegel — e também Beethoven, que chegou a apagar a dedicatória da Sinfonia Heróica a Napoleão Bonaparte, tão logo este se autoproclamou imperador.

Imaginava, ali, a cena popular malograda. Mas recebi de volta uma daquelas aulas inesquecíveis: história com didática e uma pitada de orgulho civilizatório.

Um deles perguntou meu peso e altura. Outro quis saber como eu me deslocava em Paris, se utilizava os serviços de transporte, de saúde, de segurança pública. Como meus familiares residentes na França se beneficiavam do sistema de educação. Fui respondendo, sem entender bem aonde queriam chegar.

Então, foram diretos:

— A Revolução Francesa tanto conseguiu êxito que universalizou das medidas comerciais ao acesso aos serviços públicos. Tudo para todos. O que o povo, que fez a revolução, queria, conseguiu. Pouco importa como a elite controlaria o poder ou quem o assumiria depois do banho de sangue da guilhotina. O essencial era isso: o povo não aceitava — nem aceita — que os seus direitos sejam regateados. Qualquer tentativa de tirá-los é repudiada nas ruas — não sem aquela cultura própria da revolução: quebra-quebra!

Outro, mais ácido, arrematou:

— Os americanos, da margem direita do Rio Grande até a Patagônia, dão mais importância aos nomes no poder do que aos seus próprios direitos. Preferem a ilusão da lei ao exercício real da cidadania. E se interessam mais por partidos e personalidades do que pela efetiva prestação de serviços — mesmo pagando os tributos mais caros do mundo. O serviço público tem, como prévia autorizativa, o assistencialismo. Não por acaso, vivem aos gritos de “Fora! Fora! Abaixo! Abaixo!” sempre que lhes faltam escolas, hospitais, transporte, segurança ou paz. São, no fundo, pessoais na condução da nação. Cada um se resolve dando o seu jeito — mesmo que esses sejam movimentos das elites culturais.

A crítica me tocou fundo, talvez por lembrar de um velho texto de Borges — “Nosso pobre individualismo” — onde se diz, ao modo, que o latino-americano não acredita no Estado, nem confia nele. Vive como se o bem comum fosse uma farsa. Sabe que as leis não funcionam, então se adapta, se arranja. Faz do jeitinho sua ética e do favor seu contrato. E, quando sobe ao poder, leva esse mesmo código para dentro das instituições — que passam a agir como indivíduos: com vaidades, vinganças, rancores e paixões. O Estado vira gente. Mas gente pequena.

No Brasil, não se sabe se o jeitinho é um desvio da escola ou uma escola do desvio.

No Nordeste, especialmente no interior, os políticos, em sua maioria, têm seus fundamentos eleitorais na prestação de serviços públicos essenciais: saúde, educação e judiciário. Por isso, se não forem médicos ou advogados, não têm chances eleitorais. São atravessadores do Estado — que perdem, inclusive, o vínculo com suas raízes quando se elegem. Usam seus mandatos para entregar a contraprestação tributária devida — como se fossem benfeitores. E o cidadão, necessitado, confunde seus próprios direitos com favores personalizados, recebidos na hora da urgência, pelo caminho do assistencialismo.

E, para que esse teatro continue de pé, há um novo ator de luxo: o serviço de imprensa — agora chamado de marketing político. Sua função? Cuidar das narrativas oficiais e distribuir a fortuna pública em campanhas de comunicação. Mentir, enfim, com estética.

São memórias de 14 de julho. Isso para lembrar o aviso de um empregado do castelo de Versalhes ao rei Luís XVI:

— ‘Não provoque o julgamento popular!’

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