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O Desodorante (Irapuan Sobral)

Ao escolher o nome Eva, não imaginava um paradoxo à sua crença: a mulher pecadora era uma filha direta de Deus. Mas ela não culpava o pai pela criação, provando que a vida é única e não se corrige para trás e nem por culpas.

Na última vez que nos encontramos, ele me contou uma história de suas estripulias virtuais, à qual eu não queria dar credibilidade — mas que me fascinou ao ponto de ocupar espaços da memória.

Como via filosofia em tudo, não conseguia começar uma conversa sem arroubos metafísicos. Por isso, contou-me que:

Na teoria dos fractais, não há coincidências — apenas possibilidades. Todo acontecimento é um milagre, porque não existem repetições verdadeiras, reais. Deus só é Deus porque não se repete; e milagre é uma coincidência que ainda não se repetiu.

Óbvio que isso tem implicações nas teorias do eterno retorno. Ninguém volta o mesmo para o mesmo lugar.

Aqueles encontros não pareciam fortuitos, mas circunstanciais. Primeiro, porque ela não aferia o produto, como convém ao consumidor exigente que tanto demonstrava ser: ela o saboreava, literalmente, por um tempo muito além do exame de preço, conteúdo, fórmulas ou validade.

Muitas vezes exagerei nas compras, apenas para observá-la.

Também não parecia atacada pelos sufixos das décadas finais: os “entas”. A princípio, parecia ainda dos “trintas” — o que, de certo modo, explicava sua leveza, seu ritmo próprio, sem urgências. Esteticamente, lembrava um credo: roupas longas, aquém das modas, enfrentando o ambiente tropical em favor da tradição temperada de onde emanavam as ordens; cabelos longos, com amarras sutis; nenhum enfeite no corpo. Se algo nela guardava lembrança, parecia uma personificação da maternidade.

Em outras prateleiras ou gôndolas do mercado, se houvesse um encontro, o seu silêncio — de tão eloquente — incomodava. Era a pessoa ideal para uma consulta de um dia, especialmente uma manhã de arrependimento ou ressaca.

Mas naquela sessão, não havia silêncio factual. Ela se demorava. Para evitar ser notada, costumava levar o produto no carrinho e o alisava demoradamente, enquanto escolhia outros itens. Nesse particular, uma vez eu a vi devolver um outro produto, por suposto erro na escolha. Na verdade, notei, não era erro — mas uma escolha deliberada para se enganar e demorar mais. Erro é outra coisa.

No dia em que resolvi segui-la, estava com a imagem de um filme na cabeça. Como nunca a vira acompanhada — salvo quando seguida por uma garota que parecia filha, pela aparência e conduta —, dei-me à sutileza da investigação.

Ela não largava o desodorante, mesmo quando pedia a carne ou o pão, numa fila que lembrava loterias. A bem da verdade, ela só o largava no caixa.

Entretanto, na última vez em que estivemos juntos no mesmo mercado, fiz questão de compartilhar a mesma fila — mesmo tendo direito à caixa especial, por causa da minha idade.

Eu me imaginava invisível, como se pensam os espiões. Temia, entretanto, o oposto: ser abordado — e não ter um álibi possível, como não os têm os assaltantes de rua.

Meti-me como um curioso e fui.

Quando começou a pôr as compras na esteira, ela descartou o desodorante — não mais com o mesmo carinho com que o conduzira até ali —, e ali terminou tudo o que ainda inventava, dizendo:

– Retira-te de mim!

Estranhei a frase. Tomei-a por mal-entendido, até que, zapeando alguns sites adultos, vi uma Eva, cujo trabalho era atacar e provocar, nos comentários, imagens e vídeos eróticos — especialmente de publicidade de produtos ou pessoas. A frase de abertura era sempre a mesma:

– Retira-te de mim!

O curioso é que alguns garotos de programa vendiam impressões usando desodorantes como medida de aferimento. Depois que descobri a coincidência, passei por ela e lembrei de Eva, Sara, Raabe, Lia, Abigail, Betsabá, Dalila, Rute, Ester, Maria Madalena… O desejo ficou sendo imoral. Mas não é o desejo que nega a divindade. A divindade é negada em si no não sê-La.

Outro tempo depois, vi-a na praia vestida ao sol de verão e brilhando na cor — “linda como a pele macia de Oxum” —, mais dada ao tempo. Não usava mais a aliança e os cabelos sugeriam rédeas do vento. Ela me olhou, com olhos de lembrança, até riu — e caminhou inteira para um mergulho.

Em cada passo, cadenciava uma mensagem invisível:

– Eu olhava pra você!

Fiz-me o vento à audição do relato.