Para Madrinha Bilinha, Ceicinha, Chachá, Bebé, Bibi e todas as mães do mundo.
Há quase um mês eu estava com o texto decorado e, vez por outra, ensaiava a leitura à observadora, crítica e — aos meus olhos infantis — emotiva plateia do ‘dotô’.
Ficávamos nós dois no Gabinete (a última sala da casa contígua à nossa), com uma janela e uma porta que se abriam para o muro comum (o meu reino) e à vista da Serra do Horebe — com aqueles anos compostos de eternidade e sombras.
Ele me punha na porta de entrada, em cima do batente, enquanto, sentado em sua cadeira, trabalhava alguns moldes de ‘chapas’ (dentaduras), fumando o seu cigarro ‘Continental’ — sem filtro — apoiado naquela mesa de um azul claro descolorido.
Eu consigo ver, com tanta nitidez, a cena, que Deus me poupou da arte do desenho e da pintura.
Lá atrás, na primeira leitura, algumas palavras da sua ‘letra de dotô’ estavam trocadas, porque eram ininteligíveis para mim, mas traduzíveis por Marah. Ela, entretanto, não acertava todas. Creio que o pessoal das farmácias fazia um curso especial — ou entendia por aproximação, como o teclado moderno dos computadores, para aviar as receitas dele. Ceicinha fazia a correção ortográfica.
Eu era o mensageiro preferencial dos serviços do Gabinete, depois que Oscarzinho veio estudar em João Pessoa, já um rapaz. As meninas iam se eu não estivesse em casa, mas, de regra, a contragosto. Há cenas fantásticas de Iraneuza praguejando no caminho — porque ele sempre escolhia o mais longo, quando era ela a substituta escolhida.
Juro! Agora, como se estivesse confessando uma das minhas travessuras — sob a dolorida ameaça de um calçado, de um cinto ou da escova com a qual ele limpava os paletós —, que eu não o olhava: EU O ADORAVA. Ele sempre foi a fonte de tudo o que precisei na vida. Era ‘altarizado’.
Depois que me imaginei possível, na minha insana maturidade, o altar desapareceu. Hoje, meu maior temor é que alguém me ponha naquele lugar sagrado, distante, brilhante, celeste…desmerecido.
Para mim, pela etimologia da palavra, ele era PAPAI — como na onomatopeia dos lábios se batendo antes do choro que anuncia o nascer. Traduzo a palavra como sendo: aquele que diz que o choro dá vida; ou que a vida se abre pelo choro. É a primeira palavra, depois do grito.
Também era no Gabinete — numa sala anterior à oficina (às vezes espalhados por lá) — que ficavam os livros dele, compondo aquela famosa biblioteca que me formou.
Muitos dos livros — na maioria, coleções, mas também volumes destacados de poesia, almanaques e chrestomatias, foram escolhidos por mim, que me comprometia a decorá-los para récitas em alguma mesa de bar, ou em ocasiões especiais em família ou entre amigos.
Nossa intimidade tanto chegou ao sublime que, numa viagem de João Pessoa para Jatobá, disputamos cada quilômetro com poesias. A bem da verdade, devo dizer que fui vencido — porque, já em Cajazeiras, ele começou a recitar o verso da História de Mariquinha e José de Souza Leão, com o qual descemos do carro já em casa:
A força que o amor tem
Não há quem possa vencer:
Dá coragem ao homem fraco,
Perde o medo de morrer,
Fica veloz como o vento,
Cria ferida por dentro —
Quem está fora não vê!

Não havia caminho com ele sem fascinantes histórias. Sem ele, mesmo as insistentes repetições perderam-se no eco do infinito. Não há voz.
Depois, ele me suportou adolescente com Síndrome de Atlas — aquele que se imagina conduzindo o mundo — e com rebeldia. Como o nome é parte essencial da personalidade, ele sabia muito mais de mim, porque se conhecia.
E eu me postava à declamação, sob a direção dele:
— Nesse ponto, olhe para a plateia!
— Quando for dizer essa frase, estenda os braços!
— Baixe a cabeça!
— Respire fundo!
Foi quando adolescente que deixei, por vergonha, de fazer os discursos. Ele também já não achava que era preciso aquela pedagogia — cuja origem remonta à partida de Badia.
Emendo assim os acontecimentos, porque li, numa carta dele para vovó, um trecho muito curioso, já usado e desbotado nas terapias:
“Irapuanzinho e Iacira falam toda hora e todo instante em Neuzinha.”
A casa de vovô já havia passado por algo semelhante com a morte de tia Alice, e ele sabia dos efeitos na família.
Eu já tentei de todas as formas resgatar os textos decorados. Penso que o texto tinha uma estrutura central comum, que ele modificava singelamente a cada ano, à medida em que eu conhecia algumas palavras novas, sem dificuldade de pronunciá-las.
Bem! A récita era no Teatro Paroquial Pe. José Gálea, em todos os segundos domingos de maio que eu fui criança. Era onde a escola exibia os “trabalhos em cartolina”, encenava peças de teatro (fui ator em algumas) e essas declamações.
Lembro, muito bem, da presença certa, na primeira fila, em cadeiras cativas, de Dona Cletice (esposa de Tasso, o carpinteiro) e de Dona Maria (esposa de Seu Messias Tavares). Nas lágrimas delas estão gravados esses filmes.
Como sei que lágrimas maternas formam diamantes, em algum instante eu assistirei a algo mais ou menos assim, em sua cena final:
“Zele pelas sua mãe agora, enquanto pode chamá-la MAMÃE.
Essa falta não é suportável, sem prantos e dor — e nem pode ser preenchida NUNCA MAIS, salvo na esperança da fé nas hostes celestiais.
Eu, que não tenho mãe, vivo essa ausência sem fim — PARA SEMPRE.”
…
Pode ter sido naquele tempo que entendi: a palavra mamãe, em qualquer idioma, vem do gesto que consola o choro de viver — na mamada. A etimologia aqui não é científica: é sensorial. Mamãe não vem do dicionário: vem do seio. Vem da língua grudada ao céu da boca. Vem da fome — e da saciedade que chora.