Antes de perder quase totalmente a memória, não esqueçamos que ela existiu e para que ela lhe servia. Há coisas que são memória da infância, do campo, da cidade, da nossa primeira casa, em tempos atrás, que, esquecida, lá se vai parte da nossa vida. Imagine-se que alguém tenha a loucura de demolir o conjunto histórico da Igreja São Francisco para fazer uma passagem do Centro ao Bairro do Roger, como rua a outros destinos… Assim, demolir o histórico é diminuir a memória, esquecê-la ou até mesmo sacudir fora lembranças da cidade, ela que nos faz recuperar o que o tempo devorou…
A Memória (deusa grega Mnemosine) era irmã do Tempo (Cronos), implacável devorador, que engolia os filhos para que esses não chegassem a tomar o seu trono. Mas Zeus, salvo pela mãe Reia, escapou das suas garras e, sobrevivendo a essa devoração, tornou-se o “rei dos deuses”, ao destronar o pai Cronos e fazendo que ele vomitasse seus irmãos engolidos pela ambição paterna. Todos os filhos de Cronos voltaram ao convívio do Olimpo, inclusive trazendo de volta o temor do pai e possível ameaça ao próprio Zeus.
Nós distinguimos o nosso Deus como sendo diferente das suas criaturas, mas os gregos idealizavam seus deuses como eram os humanos, em poder, astúcias, ambições, invejas, vinganças e em outras atitudes que não nos parecem divinas. Coisa parecida como acontece no nosso mundo político… A mitologia grega é farta nesses exemplos, que ajudam o nosso saber conviver com essa realidade conflituosa, situando-nos nos destinos deste mundo.
A consciência disso propicia compreensão e até adesão àqueles que defendem e protegem o nosso Patrimônio, que está sendo sempre atacado, destruído, demolido, do litoral ao Sertão… Os dirigentes políticos, que arrasam a Memória, seja ela em ruas, praças, casas ou edificações, um dia vomitarão, como Cronos, esses desrespeitos ao Patrimonio Público e à sua história. É um grave pecado mnemônico. Para deteriorar o Patrimônio, é inevitável apenas o Cronos…
Tal ofensa torna-se uma imperdoável ingratidão aos que construíram o Patrimônio Histórico que, em silêncio, sem alguma palavra, relata a nossa História ou a nossa Memória coletiva. Também há a mania de dirigentes políticos destruírem parte de outras realizações para apagar a lembrança dos seus antecessores, substituindo-as por sinais do seu passageiro nome e talvez de medíocre gestão. A gratidão não existe no futuro, ela se realiza sempre relacionada à memória do passado e querida no presente.
Os demolidores da Memória se incorporarão ao esquecimento do povo, brevemente, no próximo futuro. Não bastaria tal vandalismo deixar essa capacidade destrutiva somente à ação do Tempo? A nós cabe a preservação, o restauro, a conservação de tudo que constitui nosso Patrimônio Histórico, o que torna vivas nossas lembranças. Quem é ingrato à memória não a merece. E quem se alimenta da ingratidão, como Cronos corrigido pela interferência de Zeus, vomitará ingratidões com que se alimentou. A nossa relação com o patrimônio histórico é vínculo se encontra no tempo; se não existissem os tempos no tempo, nós não existiríamos, tampouco os cuidados a preservar os espaços, onde temos existido e a respeitar esses espaços e coisas dos nossos ancestrais.
A unidade do nosso ser humano com esse universo não se fragmenta, somente quando conseguimos unir o nosso presente a todo um rico passado…