A luta em defesa dos agricultores de Alagamar uniu um líder religioso, o arcebispo Dom José Maria Pires; um argentino/judeu circuncidado, o maestro Kaplan; e um ateu assumido, o escritor W.J.Solha, na produção de um espetáculo musical intitulado “Cantata de Alagamar”. Baseado num texto do camponês Severino Izidro, conhecido como “Hino de Alagamar”, a peça artística pretendia dar maior projeção ao movimento dos trabalhadores rurais envolvidos na disputa com os proprietários das terras daquele latifúndio, denunciando abusos sofridos por famílias camponesas ali residentes. Severino era o responsável para levar as informações, por escrito, para os veículos de comunicação do estado, como ele próprio chegou a declarar, em 2010: “Quando escrevia, a gente tirava muita cópia, não é. Levava pro Jornal, levava pra diocese, deixava no movimento sindical, deixava na federação e, sempre, sempre quando a gente tinha alguma coisa que era pra decidir com a polícia,a gente tinha muito cuidado, levava logo pro jornal, quando era pra decidir alguma coisa com o governo do estado, a gente também levava jornal e tinha muito cuidado, sempre ficava com cópia. A gente nunca teve, assim, muita confiança nesse povo não, porque as coisas são distorcidas, no jornal a gente fala uma coisa e cada um faz a sua defesa, não é”. Os agricultores sabiam, portanto, o quanto uma informação errada ou mal interpretada poderia prejudicá-los.
O “Hino de Alagamar”, que inspirou a Cantata, teve um papel importante no sentido de mobilizar, de fazer o povo se reconhecer como filho da terra e parte indispensável naquela batalha. A sua letra tem uma forte convocação para a luta em defesa dos moradores da fazenda: Alagamar, meu coração/ Teu povo unido espera uma solução/ Nossa vitória fica na história; A tua glória é a nossa união. […] Teu povo forte, sem violência e sem guerra, numa luta pela terra e pela boa produção/ Da agricultura que o nosso povo consome quem consagra esse teu nome não se curva à invasão. Teus filhos querem permanecer no trabalho/sabendo que és o retalho que o pobre ainda arranja o pão; Alagamar de tantas belezas mil/ tu sabes que no Brasil acabou-se a escravidão. Nossa Tensão Social Organizada/ ela nunca foi forjada por quem usa de outros feitos. Foram as prisões e os despejos inimigos que fizeram meus amigos procurarem seus direitos. Não temos ódio nem preguiça nem vingança/ mas temos a esperança de nossa libertação/ Para o nosso povo ter produtos agradáveis, nós somos os responsáveis por sua alimentação”.
O teatrólogo Fernando Teixeira ficou responsável pela direção do jogral, que contava com os atores Buda Lira, Ubiratan de Assis e João Costa. A obra baseada em ritmos e poesia vinculados à nossa cultura, harmonizando-os com a modernidade, teve a participação de artistas da chamada música erudita, tais como solistas, tenores, coro misto e orquestra de câmara, integrantes da Universidade Federal da Paraíba. A ópera camponesa não podia ser apresentada nos teatros, porquanto proibida pela censura em razão do seu conteúdo político de denúncia da perseguição a que estavam sendo submetidos os agricultores pela Ditadura Militar. Por isso, sua estreia aconteceu no dia 17 de junho de 1979, na Capela da Igreja de São Francisco, com um público de aproximadamente quatrocentas pessoas, que aplaudiu de pé o espetáculo.
Na oportunidade também se faziam presentes, como expectadores, o Arcebispo Dom Hélder Câmara, de Olinda e Recife e Dom Fragoso, Bispo de Cratéus, ambos , ao lado de Dom José Maria Pires, apontados pela imprensa aliada ao governo como os “bispos vermelhos”, pela pregação que faziam em favor dos pobres e dos oprimidos. O espetáculo, gravado em disco vinil, recebeu a apresentação de Dom Hélder, que, entre outras colocações, afirmou: “A Cantata nos traz a boa nova de que nossa gente sofrida sabe muito bem que seria loucura pegar em armas, cujos fabricantes são seus opressores, mas não está, de modo algum acovardada e sem ação. Aprende sempre mais que a força do povo é a união, não para pisar direitos dos outros, mas para não deixar que ninguém pise direitos seus. Para quem tem ouvidos de ouvir, é cantata de esperança e de amor”.
Em 2014, foi reapresentada no último dia do Festival de Artes de Areia, no Colégio Santa Rita. A cantata, naquela oportunidade, teve a participação do Coro Villa-Lobos, de João Pessoa. Em cena estiveram os solistas Vladimir Silva e Fátima França, os narradores Ubiratan de Assis, Bia Cagliani e Daniel Porpino e na regência, Carlos Anísio.
Quase meio século depois a história da luta do povo de Alagamar demonstra que o poder da união, do direito e da comunicação, consegue vencer o autoritarismo e a força do dinheiro.
Rui Leitão