Eu não ia trabalhar, ia à aula”. José Carlos dos Anjos Wallach sobre seus 10 anos no jornal A União
“Eu não ia trabalhar, ia à aula”.
A frase acima é o título do artigo do jornalista José Carlos dos Anjos Wallach, o Zeca, no livro A União – Escola de Jornalismo (páginas 103 a 107). Aliás, Dos Anjos, assim eu o chamava, foi quem sugeriu o título dessa obra publicada em 2018, uma coletânea de depoimentos que publiquei.
Conheci Dos Anjos na redação da Secretaria de Comunicação do Governo da Paraíba. Ali cheguei para trabalhar em abril de 1995. Na imprensa paraibana Dos Anjos é unanimidade. Pacato, simples, educação, profissional capacitado, pessoa do bem, de muita paz e luz.
Vinha acompanhando sua luta pela vida sua partida com apenas 62 anos, a idade que tenho hoje, é muito impactante para nós colegas, amigos, e, sobretudo para os familiares. Deus o acolha. Deus conforte sua família.
No seu blog Festar Muito, Dos Anjos divulgava muito bem a agenda cultural da Paraíba. Até um dia meu caro Dos Anjos.
Presto aqui minha homenagem: o depoimento de Dos Anjos, na íntegra, sobre seus 10 anos no jornal A União.
Eu não ia trabalhar, ia à aula
José Carlos dos Anjos Wallach
Biu Ramos, Gonzaga Rodrigues, Nathanael Alves, Antônio Barreto Neto, Carlos Aranha, Nonato Guedes, Agnaldo Almeida, Sebastião Lucena, Silvio Osias, Wellington Farias. A lista de nomes – muitos deles considerados por mim como mestres, porque me apontaram caminhos e me ensinaram – é grande. Era assim a redação e diretoria de A União, quando passei por lá.
Não uso o termo ‘escola’ como força de expressão. Foi isso mesmo que o jornal A União foi para mim durante os meus primeiros cinco anos como jornalista antes de ingressar na graduação da UFPB.
Considero que ainda vivi um período, de certa forma, romântico no fazer jornalístico. Não que não houvesse o viés técnico no dia a dia das Redações daquela época (1978 a 1983). Claro que existi a, e muito. Mas para um garoto de 17 anos, sendo o primeiro emprego uma Redação de jornal é algo um pouco assustador (para mim e minha timidez, sim).
Enfim, foi assim que comecei. Sendo levado pelo meu pai, Fernando Wallach (jornalista dos Diários Associados, tendo passado pelo Diário da Borborema, TV Borborema e jornal O Norte), a uma Redação. Na verdade, nem foi a A União a primeira visão que tive do interior de um jornal, mas sim o Correio da Paraíba, quando a Redação funcionava no primeiro andar de um velho sobrado da Rua Barão do Triunfo. Passei por lá pouco tempo, muito assustado, vendo tudo passar tão rápido, absorvendo informação e o estresse natural de uma Redação.
Mais ou menos um mês depois, cheguei n’A União, e fui apresentado a Frutuoso Chaves, chefe de Reportagem. “É o menino de Wallach?”. Ouvi ali, na Redação da 1817 (outro sobrado antigo na praça mais central da cidade) o que seria por muito tempo a minha identificação no meio.
Popas que ensinaram
Começou, então, um novo processo na minha vida. O estudante secundarista entrava ali na universidade prática de jornalismo, ouvindo muito e lendo também. Tive que correr atrás, preparar a base, me informar, ampliar os horizontes.
Posso dizer que dei muita sorte em ter um chefe de Reportagem que também foi o melhor professor que poderia ter escolhido. Frutuoso, ou Frutuca, foi extremamente rígido com o texto: saber identificar o fato, contar de forma clara e sem dúvidas eram tópicos religiosamente cobrados.
Frutuca não tinha papas na língua e passava esse ensinamento de uma forma, vamos dizer assim, bem ortodoxa. Fácil ouvir um “esse texto tá uma droga”, seguido de uma ordem muito clara: “Refaz”. Hoje em dia, atitudes assim seriam confundidas com ‘assédio moral’.
Mas, a voz enérgica de Frutuca nunca vinha desacompanhada de uma orientação clara. “Você tem que ir por aqui…” ou “Veja como fica mais claro assim…”. Esse tipo de acompanhamento fez toda a diferença para mim. Mais tarde percebi o quanto aquilo foi necessário para manter as antenas ligadas.
Ao mesmo tempo em que me ensinava a manter um texto claro, enxuto e informativo, Frutuoso passava a única receita que até hoje – na era digital – pode dar ao jornalista a primazia de ser um técnico da informação: dominar a narrativa. Por isso, invariavelmente, me lembro dessas orientações quando escrevo.
Certa vez, imaginava ter escrito um texto irretocável para um iniciante – não me recordo mais sobre o quê – mais julgava ter feito o serviço direito. Entreguei a lauda a Frutuoso (naquela época tínhamos máquinas datilográficas e papel). O fato de ele ter lido o primeiro parágrafo e não ter parado me garantia a certeza de que estava no caminho certo. Leu até o fim e disse: “Tá chegando”. Pronto, ganhei a semana. Em seguida, a observação que me matou de vergonha: “Mas nessa frase aqui você mostrou como é difícil escrever edifício”. Disse isso e riu, amistosamente, como um professor, apontando meu erro crasso de português. Grafei ‘edifícil’, querendo me reportar a prédio.
Lembro de outras reprimendas que no princípio soavam pesadas, mas que depois achava engraçadas. Entretanto não eram esquecidas, viravam regras de atenção ao texto. “Se você for escrever esse lead sem vírgulas ou pontos, não pode trabalhar no rádio, porque vai matar o locutor”. Isso só ficou engraçado depois, quando eu já dominava a técnica, mas naquele momento…
Faro, emoção
Aprender ao lado de gente como Sebastião Lucena, por exemplo, me deu condições de ver a atuação do legítimo repórter, capaz de enxergar notícia, vasculhar uma boa história.
Como ele, também Wellington Farias, que ficou conhecido pelo sugestivo ‘Fodinha’, repórter para qualquer trabalho, autor de excelentes reportagens e entrevistas; Lena Guimarães, que assumiu a chefia de Reportagem, e mantinha o ritmo com sua característica energia.
Ver o trabalho do Segundo Caderno feito por Carlos Aranha e Sílvio Osias (na época da Redação da Rua João Amorim) era uma delícia. Densidade na cobertura cultural e, vez por outra, entrevistas na Redação com artistas.
O jornal A União, por ser órgão oficial do Governo, tinha que se desdobrar em conteúdo para atrair a leitura. E sua equipe, sob o comando de Agnaldo Almeida em boa parte do tempo que lá estive, soube fazer muito bem.
Se era limitado em abordagens de orientação política, o jornal compensava investindo muito nas áreas de cultura, esportes e, sobretudo, em reportagens especiais. Isso valeu à A União, por muito tempo, o título de melhor conteúdo nos finais de semana graças ao suplemento Jornal de Domingo. De terça a sábado, o ‘banho’ era dado pelas equipes de esporte, cultura e cidades.
Grandes entrevistas foram levadas às edições do final de semana. Uma delas permaneceu na memória, tal o clima que provocou na Redação. O entrevistado foi Gregório Bezerra, líder da Intentona Comunista de 1935. Pela história que o cercava, justificava-se a cena: toda a Redação parou e ocupou a sala da editoria para assistir a conversa com Gregório. De arrepiar ver aquilo: repórteres, editores, revisores, diagramadores, sentados em cadeiras ou no chão, acompanhando perguntas e respostas.
Passar por coisas assim dá formação cultural, técnica e emocional. É essencial ao jornalista e fundamental para o repórter, o cara que traz as histórias para a Redação.
Perspicácia e coragem
Essa é uma característica inerente à profissão e A União me fez ver isso. Tinha que ser assim, afinal era um jornal de governo num regime militar, e a equipe precisava se desdobrar em criatividade para cobrir e abordar determinados assuntos.
Ainda bem que minha vivência da ditadura como profissional de imprensa não foi das mais traumáticas. Isso porque eu já estava vivendo um período de distensão, quando já se desenhava a abertura democrática. Ainda vi polícia batendo em trabalhador, estudante e agricultor por causa de greve, de atos públicos ou ocupações, mas já havia uma resistência social e uma maior divulgação disso.
Minha aula de perspicácia foi numa cobertura de conflito por terra e o professor foi o fotógrafo que me acompanhou, Antonio David. Agricultores sem-terra haviam ocupado propriedades de latifundiários na região de Camucim, município de Pitimbu.
Os donos das terras revidaram, jogando jagunços contra os trabalhadores: houve extrema violência. Quando chegamos, a polícia estava no local, mas parecia mais defender os donos de terra do que os agricultores agredidos. Eram crianças, velhos e adultos.
Nos pusemos a coletar informações: eu entrevistando e anotando o que via e ouvia, e David, com o ‘dedo nervoso’, registrava a cena. Muita fumaça, barracas derrubadas, gente ferida, crianças chorando.
Como se podia esperar daquela polícia, ela veio logo sobre nós e os soldados exigiram a câmera. Mas David teve muita presença de espírito e uma ideia genial: correu para um canto enquanto rebobinava o filme (naquela época não havia película e revelação, em laboratórios colados nas redações), colocou no tubo preto e o entregou ao arcebispo Dom José Maria Pires, que imediatamente o guardou sob a batina.
David colocou outro filme na máquina, virgem, e foi esse que foi entregue ao policial. Pronto, havíamos preservado nossas imagens. Mais tarde, já na Redação, a pior notícia é que nossa cobertura não ocuparia mais que um registro em duas colunas, sem detalhes do que ocorrera no ‘campo de guerra’ de Camucim. Um registro frio, o máximo que A União conseguiria dar sobre o assunto.
Todos sabíamos que havia grande chance dessa cobertura ser censurada, mas em nenhum instante a Redação se deixou levar por isso. Determinou e deu estrutura para a cobertura. Para mim, foram várias lições: o jornal não é do jornalista, muito menos do leitor; o jornalista está para a censura como a água para o óleo; pauta censurada é natimorta; é preciso ter perspicácia.
Tiro na capa
Outra cena que me marcou ocorreu na primeira grande greve de motoristas de ônibus de João Pessoa, deflagrada após os empresários não aceitarem a proposta de reajuste salarial da categoria (também não recordo data, mas acredito que entre 1979-1980). Várias áreas da cidade viraram praça de guerra entre policiais e grupos de grevistas que faziam piquetes parando os ônibus e mandando motoristas e passageiros descerem. Na frente do Lyceu Paraibano, troncos de árvores foram postos para travar o tráfego.
O fato mais agudo nessa greve se deu em frente ao Mercado Central, quando policiais civis prendiam um dos motoristas grevistas e um grupo de colegas veio em seu socorro, confrontando os policiais. Um dos agentes acabou nas mãos dos grevistas e, para se salvar, mesmo caído, conseguiu sacar o revólver e atirou para cima, atingindo no pescoço um dos motoristas que faziam piquete e tentavam linchá-lo.
A foto do ano foi feita pelo companheiro Ortilo Antônio e publicada na capa de A União no dia seguinte: o agente da polícia civil de arma na mão, ajudado pelo superior a entrar na viatura, que foi apedrejada e saiu em disparada.
Os companheiros
Nos quase dez anos que fiquei no jornal A União fui sempre repórter. Parece muito tempo, mas o volume de informação e aprendizagem é tanto que nem me dei conta. A passagem pela ‘velha senhora’ findou quando a empresa de economia mista passou para o regime jurídico estatutário. Optei por ficar no quadro da Secretaria de Comunicação. A essa altura já trabalhava em jornal privado, O Momento.
Claro que não vou lembrar alguns – até porque a redação sempre foi de alta rotatividade e já faz bastante tempo – mas fiz muitos amigos: Gilberto Lopes, Arlindo Almeida, Josemar Pontes, Guilherme Cabral, Sebastião Barbosa (Barbosinha), Silvana Sorrentino, Land e Wellington Seixas, Pedro Moreira, Moraes, Geraldo Varela, Hilton Gouveia, Aparecida, Luzia, Luiz Carlos, Paulo Santos, Walter Galvão, Petrônio Souto, Martinho Moreira Franco, Milton Nóbrega, Domingos Sávio, Domício…
Colaboração Josélio Carneiro