Ingá (PB) – O “seu Bill”, como é conhecido o agricultor Severino Vicente, de 71 anos, lembra bem como era produzir algodão na década de 1970, quando a Paraíba estava entre os maiores produtores da pluma no País.
“A gente produzia bastante, as famílias viviam bem, mas usava muito veneno. Me acidentei e quase morri. Depois veio o bicudo e acabou com tudo”, contou ele ao AgFeed, num raro espaço de sombra de uma fazenda do município de Ingá, que fica a 99km de João Pessoa, na região do Agreste.
O uso dos antigos agrotóxicos ficou para trás e hoje seu Bill é o presidente da Itacoop, cooperativa dos agricultores familiares da região, com foco na produção de algodão orgânico. E de histórias que estão atraindo a atenção de marcas como Renner, Calvin Klein e até Louis Vuitton.
Uma das idealizadoras do projeto, que hoje conta com 56 agricultores, é a empresária paraibana do setor de confecções em moda sustentável Francisca Vieira, filha de uma família que já produziu algodão na época em que a cultura esteve no auge.
“Não aguentava mais trabalhar com o poliéster, aí apareceu o cultivo do algodão orgânico colorido na região e de cara percebi que era algo atrativo para os europeus”, diz ela, também presidente da Associação Brasileira da Indústria da Moda Sustentável (Abrimos).
O cultivo de algodão colorido (e orgânico) na região Nordeste do Brasil começou com um programa da Embrapa, há mais de 20 anos, mas demorou a decolar. Somente agora, por meio de projetos isolados, em diferentes regiões, alguns com incentivos de prefeituras, governos estaduais e órgãos como Sebrae, passou a ganhar mais ritmo.
“A produção agroecológica de algodão é uma tendência, mas precisamos de organização na cadeia produtiva e apoio no processo de comercialização”, afirmou a chefe-geral da Embrapa Algodão, Nair Helena Castro Arriel.
O projeto de Ingá é um exemplo claro disso. Teve início em 2021 com poucos agricultores em 5 hectares. Mas foi sendo ampliado à medida que ganhou apoio da prefeitura local e de empresários da indústria têxtil e da moda. Na safra 2023 foram cultivados 93 hectares.
Além da empresa de Francisca Vieira, hoje chamada Natural Cotton Color, que vende roupas e tecidos sustentáveis no Brasil e no exterior, são importantes apoiadores do projeto as indústrias têxteis Dalila, de Santa Catarina, e Cataguases, de Minas Gerais.
A presença do AgFeed na Paraíba foi para conhecer in loco o evento chamado de “Dia da Colheita”, realizado nos dias 26 e 27 de outubro, em Ingá, com direito a estações experimentais, palestras, rodada de negócios e, por fim, um desfile de moda.
A “passarela” foi montada pela Abrimos no meio da lavoura, o que por si só já seria inusitado. A diversidade do público, no entanto, era outro destaque.
Agricultores familiares, que plantam e colhem manualmente o algodão, colocaram o uniforme da cooperativa para acompanhar o desfile, inclusive o seu Bill. Ao lado deles estavam políticos e empresários – entre eles executivos de marcas como Renner e Calvin Klein.
Também acompanhou o evento a brasileira Newma Barbosa, que veio de Milão, representando a organização de moda sustentável Friends of the Earth. Os produtos feitos na Paraíba já são vendidos na loja do grupo, na Itália.
A moda sustentável, afinal, é uma indústria que cresce rápido em todo o mundo, Segundo levantamento da ResearchandMarkets, especializada em pesquisas de mercado, o segmento movimentou US$ 7,6 bilhões em 2022 e deve atingir US$ 16 bilhões até 2032.
Não por acaso, grifes nacionais e internacionais movem-se pelo globo em busca de matéria-prima com certificação e boas histórias para serem associadas aos seus produtos. Durante o evento, o AgFeed conversou com Eduardo Möller Ferlauto, gerente geral de sustentabilidade das lojas Renner S.A e diretor executivo do Instituto Lojas Renner.
“Desde 2017 já participamos de projetos de incentivo ao algodão agroecológico, mas em outras regiões da Paraíba e outros estados. Resolvemos vir conhecer este agora, em Ingá, já que temos planos de ampliar”, disse o executivo.
Ferlauto afirmou que a empresa tem buscado aproximar as estratégias corporativas com as causas apoiadas pelo Instituto Renner. Até hoje a empresa já incentivou a produção de 110 toneladas de algodão, que depois são utilizadas como matéria-prima nos tecidos das chamadas “coleções cápsulas”.
“Não acredito em produção com maior escala em curto prazo e sim na qualidade, na estruturação destes projetos. Nosso foco é geração de impacto social positivo, não é fácil escalar produção, estamos falando de uma colheita manual, a escala que buscamos é voltada para o aumento de geração de renda dos produtores envolvidos”, ressaltou o diretor.
Segundo ele, para um avanço mais significativo na escala de produção será necessário envolvimento de mais agentes que propiciem inovação e aumento de produtividade, o que pode ocorrer “talvez mais lá na frente”.
Nesta terça-feira (31 de outubro) a Renner vai lançar uma nova coleção sustentável e, com isso, afirma totalizar, desde que começou a investir, 35 mil peças. As roupas são vendidas em lotes limitados, para promover as ações de sustentabilidade.
“No caso da Calvin Klein, eles estão sim interessados em comprar nossos tecidos sustentáveis, mas precisam se adaptar ao nosso modelo e vieram conhecer mais detalhes do projeto”, disse Francisca Vieira.
A empresária explica que, como a produção de algodão orgânico ainda é limitada, é necessário fechar o contrato com um ano de antecedência, para garantir o fornecimento, algo a que a marca americana ainda deverá se adaptar.
Mercado internacional
O diretor da Dalila Têxtil, André Klein, que participa do projeto desde o começo, diz que uma das motivações foi deixar de importar o algodão orgânico, que vinha de países como Turquia e Indonésia.
“Ficávamos incomodados com isso, afinal o Brasil é um grande produtor de algodão convencional. Então, começamos a nossa busca, procurando pequenas iniciativas e conhecemos a Francisca, entre 2019 e 2020”, conta.
O empresário diz que no município de Ingá “encontrou uma força de pessoas querendo fazer o projeto acontecer”.
Na safra 2021, a Dalila ajudou a financiar o plantio. Desde então, diz já ter multiplicado por 10 o volume de algodão produzido e comprado na região.
A empresa produz quase 600 toneladas de malhas por mês e, embora use 50% de matéria prima sustentável, apenas 5% é oriundo de algodão orgânico.
“É um projeto de viés social, porque fica difícil imaginar que o orgânico vai dominar, afinal é outra escala de custo”, admite.
Mesmo assim, André Klein e Francisca Vieira acreditam no crescimento da demanda, principalmente em função de um certificado internacional que está sendo buscado pelo projeto.
Atualmente, a iniciativa já tem o selo de certificação orgânica da Ecocert, com assistência local da empresa CertAgro. Agora o grupo busca o chamado GOTS – Global Organic Textile Standard, que poderá ampliar as oportunidades de exportação.
“Já temos contato da Louis Vuitton”, diz Francisca, entusiasmada com a possibilidade de ganhar o selo.
Os empresários envolvidos no projeto acabam de inaugurar uma usina de beneficiamento, que só vai descaroçar algodão orgânico, evitando qualquer tipo de contaminação com o transgênico, muito utilizado no Brasil. O objetivo foi se adequar às exigências do GOTS.
Foram usados prédios que estavam abandonados desde a década de 1980, quando, no auge do algodão da Paraíba, lá funcionava a usina do grupo americano Anderson Clayton, instalado no estado desde a década de 30, contou o prefeito Robério Buriti, que desapropriou o terreno para ajudar no projeto.
No mesmo local, será montada uma usina para extrair o óleo do caroço, o que também deve agregar valor à produção. O investimento estimado, nos dois projetos, é de cerca de R$ 1,8 milhão.
O acesso ao mercado internacional também deve ser facilitado por meio da ApexBrasil, agência de promoção das exportações, que mandou representante ao evento de Ingá, mas ainda está em fase de avaliação de um projeto específico para o algodão orgânico.
Manejo diferenciado
A maior parte dos 93 hectares plantados pela Itacoop está numa fazenda que pertence a um pecuarista da região (André Buriti, primo do prefeito, que não estava no evento).
O fazendeiro resolveu “emprestar” a área, sem receber nenhum pagamento, dizem os envolvidos no projeto. O benefício para o dono da propriedade seria a rotação de pastagens, já que a terra onde se colhe algodão numa safra acaba sendo usada para a criação do gado no ano seguinte.
Foram feitos contratos de comodato e distribuídos lotes para as famílias, para o cultivo do algodão orgânico.
Na época de plantio, elas se reúnem em grupos e fazem o trabalho de forma acelerada, já que este é o principal “manejo” para o controle do bicudo.
A praga que mais causa prejuízos aos cotonicultores acaba “convivendo” com eles, explicou o extensionista da Empaer (Empresa Paraibana de Extensão Rural), Hudson de Souza e Silva, já que nenhum defensivo químico pode ser aplicado.
A estratégia é impedir que o bicudo ataque o algodão em si, por meio da janela de plantio. Também ajudam os chamados consórcios, cultivos de outras espécies junto do algodão para melhor controlar as pragas e doenças.
Os fertilizantes utilizados na lavoura são os chamados “naturais”, a base de extrato de nim e extrato de pereiro, planta nativa do agreste.
O técnico da Empaer contou que nesta última safra passaram a usar defensivos biológicos, ao aplicar o fungo Bauveria bassiana – tendência que também cresce na produção convencional.
Um convênio deve ser assinado em breve com a Embrapa para que os agricultores tenham maior acesso às tecnologias e orientações agronômicas, mas principalmente, consigam criar um banco próprio de sementes orgânicas.
Atualmente todas as cultivares de algodão disponíveis para o semiárido são da Embrapa. Até agora, os agricultores vinham usando sementes doadas pela empresa ou parte do caroço colhido como semente, o que não é a melhor opção.
Nair Arriel, da Embrapa Algodão, disse que os agricultores de Ingá estão se cadastrando junto ao Ministério da Agricultura para produzir sementes certificadas. Se tudo der certo e o convênio for concretizado, devem ser doados 12kg de sementes para a próxima safra, que são suficientes para colher 800kg de sementes certificadas, em apenas 1 hectare.
Safra menor, com preço garantido
Na safra 2023 faltou chuva na região de Ingá, que chegou a ter 30 dias seguidos de sol no período de desenvolvimento do algodão orgânico.
“A produtividade, que foi de 1.100 quilos por hectare na safra passada deve ficar entre 800 e 1.000 quilos este ano”, revelou o extensionista da Empaer.
O custo de produção também deverá subir de R$ 2 mil por hectare para cerca R$ 3 mil, em função do maior uso de insumos, o que vai reduzir a rentabilidade dos agricultores.
O valor que será pago pela pluma do algodão é definido pelas indústrias parceiras na hora em que se decide qual área será possível plantar. Nesta safra o preço ficou em R$ 15 pelo quilo da pluma.
Seu Bill, de quem falamos no início desta reportagem, diz que “a vida está mió” e que tem visto amigos comprando até moto na região.
Segundo ele, com os hectares que plantou, o algodão rendeu ao final da última safra um total de R$ 25 mil (pagamento anual). Depois de pagar as dívidas que tinha, garante que sobraram R$ 15 mil, o que daria algo próximo de um salário mínimo por mês.
Um dos objetivos de Francisca Vieira agora é buscar apoio do Banco do Brasil para que os agricultores possam comprar terras e ampliar a produção. Representantes do banco e também do Sebrae Nacional – que apoiou o evento – compareceram ao desfile.
“Somente Cataguazes e Dalila já informaram que comprariam 300 toneladas, mas estamos conseguindo fornecer no máximo 130 toneladas, porque a terra é limitada, por isso buscamos estes apoios”, afirma.
Fonte: AGFEED