Escapei fedendo
Casebre rural – flickr carolrossi
ME EMBRENHEI na zona rural conhecendo aquelas serras e montanhas, algumas famílias vivem por ali há séculos, “lutando” na caatinga brava, pastorando bodes e cabras, bois e vacas, sobrevivendo as secas do jeito que pode e se emocionando com a invernada; momento de cortar a terra, sepultar os grãos e ver nascer milho, feijão, mandioca, batata, jerimum, além da pastagem para a engorda dos animais. Casas uma aqui, outra acolá. Por vezes cinco, seis, dez juntas, perto de um grupo escolar e onde se erigiu uma capela em devoção ao santo predileto.
Entrei n’uma dessas casas: “ô de casa?”, falei também o prefixo (como cantou Luiz Gonzaga), uma louvação que o Padre Ibiapina fazia por esse Mundo-Sertão: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”, “para sempre seja Deus louvado”, respondem. Casinha baixa, enterrada no chão. Frente de alvenaria pintada de amarelo pálido e o restante toda em taipa. Uma senhorinha bem magra, saia branca surrada cobrindo pernas arqueadas, blusa de manga bem florida, olhos claros, pano amarrado na cabeça, fortes marcas do tempo estampadas em seu rosto. Me recebe com uma baforada de fumaça depois de tragar seu cachimbo de barro, fumarada densa e forte; arregalo os olhos, pergunto pelas pessoas que primeiro moraram nestas terras, quando foi construída aquela casa e quem lhe deu aquele cachimbo com marcas muito antigas. O sol, já bem forte, esquentava as vestes, os braços e o juízo. Ela me convida a entrar quase sem nada falar, me manda sentar em um tamborete no que já é sala. Me mostra os cinco dedos como a me mandar esperar e, em ato contínuo, com o cachimbo na boca, aponta que vai lá dentro. Imaginei que fosse chamar alguém.
O calor avançava, a taipa não ajudava a resfriar. Verão intenso, vejo o vento carregar ligeiro a poeira para longe. Me assusto com o berro de um garoto de uns 5 ou 6 anos travado pela chupeta na boca rompendo a cortina que dividia a sala de outro cômodo, imaginei um pequeno corredor com quartos dos lados e a cozinha ao fundo. Pendurado na chupeta, uma frauda que ia até o chão e, atrás dele, uma adolescente (irmã mais velha?) corre com um chinelo na mão. O guri corria em sentido a porta para ganhar o terreiro e escapar, mas quando me viu, mudou de direção e pulou em meus braços com firmeza, como a confiar que eu não o deixaria apanhar, caímos do tamborete. Meu Deus, o que foi isso? O pobre menino parecia não ter tomado banho há dias, no seu rosto se misturavam catarro, poeira, tudo em listras d’ele tanto esfregar. Me levanto, o ajudo a levantar, a garota olha para mim contrariada e corre lá pra dentro sem nada falar. “Cá com meus botões, como diria Montesquieu, é melhor ir embora”, pensei, mas resolvi ficar. Daqui a pouco me chega uma mulher de meia idade, bem parecida com a senhora, inclusive nos trajes, e me pede desculpa: “Moço, aqui minha luta é grande com esse povo”, e ouço uma voz aveludada e um tanto grossa: “Mãaaaaaae, cadê?”, ela se vira e corre ligeiro que faz a cortina voar. Nesse movimento, minha curiosidade me faz tentar “brechar” algo. Quando chego perto, a garota, aquela mesma, me puxa pelo braço aos gritos: “Mãe, foi ele que não deixou eu bater em Chiquim”.
Passo pela entrada de dois quartos, um do lado do outro, e um vão em ‘L’ que era a cozinha e um canto onde estava o autor da voz que fez a mãe entrar. Era um jovem forte, de bochechas rosadas e poucos dentes espaçados na boca, tinha certamente alguma deficiência mental. Totalmente nu, ele tinha acabado de fazer cocô ali mesmo. Pega tudo aquilo com as mãos e se levanta ligeiro apertando entre os dedos: “Você quer, você quer?”, vou escapando para a cozinha sem antes ele esfregar as mãos na minha nuca e costas, quase! Ando ligeiro, vejo nos quartos algumas redes, em uma delas uma mulher puxava os cabelos para cima de frente a um pedaço quebrado de espelho, olhou para mim e deu uma gargalhada horrenda. Mais à frente, do lado esquerdo, uma mesa quadrada de ferro faz um barulho terrível, debaixo um garoto se acostumou a brincar empurrando a cabeça até o tampo envergar. No fundo, a porta de saída e um fumaceiro que vinha de um fogão à lenha logo no canto à direita.
“Jesus, como vou escapar?”, é quando levo duas cabeçadas, uma na bunda e outra do lado, era o gurizinho de chupeta que achava que era um touro. Reparo no canto onde está o fogão, tem uma panela com um cozido mau cheiroso, e levo outra chifrada do tourinho, que corre para puxar a saia de sua mãe que mexia o que havia na panela. Naquele momento vejo uma corda dependurada acima do fogão, reparando bem eram gabirus, uns mortos e “prontos para o consumo”, outros se boliam tentando se soltar do nó bem dado.
“Tá, não aguento mais!”. Miro a porta, escapo de outra chifrada do menino, e quem está ali no beiral? A senhora com o cachimbo. Sem piedade, na hora que corria, levanta o pé e eu caio de cara, lá fora no terreiro onde desce todo tido de imundície, todos riam e, enquanto pulava desesperadamente o cercado, acordei. Que sonho maluco! Foi um pesadelo, mas bem que poderia ser verdade.
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