Pular para o conteúdo

  Os tijolos da senzala ( Damião Ramos Cavalcanti )

 

 

                                           Os tijolos da senzala

          Se os tijolos da senzala sentissem dor, muitas dores teriam suportado, até o dia em que foram quebrados, a golpe de picaretas, pelos pedreiros sem conhecimento. Não seriam menores do que os pisados, no tempo da escravidão. Tijolos no piso que, como as telhas do teto, viram tudo, serviam a tudo, suportando todo o peso que, por cima de si, passava, dormia ou guardava-se. As dores do corpo, geralmente, curam-se, mesmo quando a solução se torne dolorida, como os cortes de uma cirurgia. Mas, espelhemo-nos no princípio lógico do que é necessário: “Retirada a causa, elimina-se o efeito” (Sublata causa, tollitur effectus). 
          Mas, por que retirar as vetustas lajes, que continham as dores do passado para nos contar, durante a escravidão? Já tinham superado os horrores senhoriais, os abusos das milhares de pisadas ou o peso dos corpos suados. Estavam ali tão somente para contar a história, testemunhar as injustiças, ressoar as chicotadas. Como se justifica apagar o passado tão revelador de avisos, de coisas, e do que não deve voltar mais? É um dolorido estrago que fazem ao patrimônio, estrago irrecuperável e injustificável, como aqueles recentemente, de modo vil e brutal, no dia 8, nos palácios dos três poderes. Essas não seriam passageiras como as dores febris das inflamações, aliviadas por paliativos analgésicos. Quase como as sofridas pela árvore decepada, na floresta virgem, pelo golpe vil do machado. A custo de qualquer lucro, o patrimônio público, característica das nossas cidades e da nossa gente, vem sendo vilipendiado, com o mesmo desdém como se vinham exterminando os yanomamis, apenas pela desumana ganância do garimpo. Tudo numa mesma trilha, estejam eles num barco ou topo de uma árvore, armados e à espreita. 
          O adequado remédio, contra tal desprezo pelo patrimônio, todos dizem: educação para valorizarmos o que fomos, somos e temos. Nesse contexto, para brotar e fazer crescer a consciência de preservação do patrimônio e combater a crescente derrubada ou demolição do que está, historicamente, construído. Não valorizar nosso patrimônio faz parte da miopia que não enxerga os conteúdos nacionais da nossa cultura. O que preocupa é que a educação, em vez de ser multiplicadora dessa sã consciência, age por uma educação meramente “tecnicista”, alheia a uma formação integral do cidadão, com ainda resquícios continuadores da “colonização cultural”.
          A atuação e a multiplicação dessas pessoas, com rejeitável postura, nas escolas e nas universidades, aprendendo e ensinando, são gente letrada, objeto do que diz Darcy Ribeiro: “Consequência natural, embora não inevitável, da própria condição de dependência das nossas sociedades (…) Mas também efeito de dois agentes causais: a) da campanha sistemática de doutrinação dos quadros universitários e sua agregação a programas forâneos; e b) da ausência de uma consciência crítica generalizada (…)”. Como apontar tais posturas, se esses propósitos, incutidos em afortunados empreendedores, em vez de soerguer o valioso patrimônio público, destroem ou deixam destruí-lo, como acontece com os tijolos da senzala? Cura-se dor de ideia com outra ideia e não com ações paliativas. Zelemos a memória coletiva, assim como cuidamos da nossa própria memória.  

Damião Ramos Cavalcanti