Papa Bento XVI morre aos 95 anos
Primeiro papa a renunciar em quase 600 anos, a saúde de Joseph Ratzinger vinha se debilitando nos últimos anos.
O Papa Emérito Bento XVI morreu neste sábado (31), aos 95 anos, após passar por uma piora repentina de saúde nos últimos dias.
“É com pesar que informo que o Papa Emérito Bento XVI faleceu hoje às 9h34 no Mosteiro Mater Ecclesiae no Vaticano. Mais informações serão fornecidas o mais breve possível”, escreveu o perfil de notícias do Vaticano no Twitter.
A saúde de Joseph Ratzinger vinha se debilitando nos últimos anos. O Vaticano havia dito nesta sexta-feira (30) em um comunicado sua condição era grave, mas estável, com atenção médica constante. Desde a renúncia, em 10 de fevereiro de 2013, o teólogo alemão vivia em um pequeno mosteiro no Vaticano.
Embora o gesto mais marcante de seu pontificado tenha sido a própria renúncia, os quase oito anos no comando da Igreja Católica também foram marcados por textos teológicos de fôlego, uma linha conservadora nas questões morais, e escândalos de disputas políticas e vazamentos de documentos do Vaticano – os chamados Vatileaks.
“Houve tempos difíceis, mas sempre Deus me guiou e me ajudou a sair, de modo que eu pudesse continuar o meu caminho”, disse Ratzinger no seu aniversário de 90 anos, já aposentado.
Renúncia ao papado
Papa Bento XVI surpreendeu o mundo quando anunciou sua renúncia, em latim, durante uma reunião rotineira com os cardeais presentes em Roma. Muitos papas da era moderna chegaram a cogitar a renúncia por motivos de saúde, entre eles Paulo VI e João Paulo II, mas nenhum deles havia concretizado essa decisão.
Na ocasião, aos 85 anos, Bento XVI disse que o motivo para deixar o cargo era a falta de forças na mente e no corpo.
“No mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor, seja do corpo, seja do ânimo, vigor que, nos últimos meses, em mim diminuiu, de modo tal a ter que reconhecer minha incapacidade de administrar bem o ministério a mim confiado.” – Papa Bento XVI
A diferença de Bento XVI em relação a outros papas que renunciaram no passado é que ele deixou o cargo de forma consciente e voluntária, alegando não ter mais forças para governar. Renunciou quase 600 anos depois de Gregório XII, que renunciou em 1415, em meio a uma divisão política na Igreja. A ideia de Gregório XII era permitir a eleição de um novo pontífice que a unificasse. Ainda mais notável, porém, foi o caso do Papa Celestino V, considerado santo pela Igreja. Em 1294, ele renunciou após apenas cinco meses no trono de Pedro, virou eremita e, no fim da vida, foi mantido prisioneiro de seu sucessor, o Papa Bonifácio VIII.
Diferentemente deles, e por escolha própria, Bento XVI tornou-se o primeiro Papa Emérito da história. Continuou se vestindo de branco e não renunciou à confortável vida no Vaticano, protegida de holofotes e multidões. Mas adotou um estilo simples e, com exceção de algumas aparições públicas e comentários teológicos publicados por escrito, manteve-se isolado. Ao renunciar, ele prometeu obediência ao seu sucessor, que viria a ser o Papa Francisco, eleito em 13 de março de 2013.
“Com um ato de extraordinária audácia, ele renovou o ofício papal, e com um último esforço o potencializou”, disse Dom Georg Gänswein, secretário particular de Bento XVI e Prefeito da Casa Pontifícia, em maio de 2016, num evento em Roma. “Não é surpreendente que, para alguns, ele seja visto como revolucionário. Outros veem nisso um papado secularizado, mais humano e menos sacro. Outros, ainda, são da opinião de que Bento XVI tenha quase desmistificado o papado.”
O escândalo Vatileaks
Embora o discurso oficial do Vaticano seja o da falta de forças para governar, até hoje muito se especula sobre os motivos que levaram à renúncia de Bento XVI. Ele mesmo afirma que a decisão foi tomada após sua viagem ao México, em março de 2012, quando levou uma queda e sentiu o peso da idade em um voo intercontinental. Foi quando percebeu que não seria capaz de ir ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) de 2013.
O momento era difícil para a Igreja Católica: os escândalos do Vatileaks expuseram uma série de problemas na forma como o Vaticano vinha sendo conduzido, entre corrupção, desvios de dinheiro, condutas sexuais contrárias ao ensinamento da Igreja e jogos de poder.
Na época, relatos na imprensa internacional mostravam um Papa isolado no Palácio Apostólico, enquanto a Igreja era comandada, na prática, pelo secretário de Estado, o cardeal Tarciso Bertone – posteriormente envolvido numa polêmica por causa da reforma de seu apartamento de 700 m usando recursos do hospital infantil Bambino Gesù, do Vaticano.
Idoso e pouco popular, Joseph Ratzinger tinha seu poder e influência enfraquecidos. Em vida, ele mesmo reconhecia que a administração não era o seu ponto mais forte e, por isso, delegava boa parte das decisões a pessoas de confiança, como o cardeal Bertone.
Em entrevista ao biógrafo Peter Seewald, autor de “O Último Testamento”, Bento XVI garantiu que jamais abandonaria a “barca de Pedro” em mar tortuoso, como pressões externas ou após a traição de alguns colaboradores. Afirmou que já havia solucionado os problemas ligados ao Vatileaks e vivia “no estado de espírito de quem pode passar o leme a quem vem depois”.
Um dos colaboradores mais próximos a ele, o mordomo Paolo Gabriele, foi condenado por ter vazado documentos pessoais do papa ao jornalista Gianluigi Nuzzi. Após prisão e julgamento, Gabriele foi perdoado por Bento XVI e continuou trabalhando no Vaticano, em outras funções. O mordomo dizia que sua intenção era expor os escândalos para ajudar o pontífice. Além dele, ninguém mais foi condenado.
Dom Gänswein insiste que a renúncia de Bento XVI não está ligada aos escândalos. “É bom que eu diga com toda a clareza que o Papa Bento, no fim, não renunciou por causa do pobre e mal dirigido ajudante de quarto [o mordomo Paolo Gabriele]”.
“Aquele escândalo era pequeno demais para uma coisa do gênero. Foi muito maior o bem ponderado passo de grandeza histórica milenar que Bento XVI realizou.” – Georg Gänswein, secretário particular de Bento XVI.
Defensor da fé
Em seu livro-entrevista com Ratzinger, Peter Seewald defende a ideia de que o principal objetivo de Bento XVI em seu pontificado era demonstrar ao mundo e à própria Igreja, atordoados por tantas mazelas, que a fé ainda é importante e que Deus é essencial para a humanidade.
“Os oito anos de seu ministério foram uma espécie de grandes exercícios espirituais dos quais a Igreja precisava para consolidar o castelo interior e fortalecer a própria alma”, escreveu o jornalista.
Para o padre e historiador italiano Roberto Regoli, a “a questão central do pontificado beneditino é a fé em Jesus Cristo, que no mundo ocidental está em nítido regresso”.
A maioria dos textos que publicou como Papa tinha esse direcionamento. Para muitos, o grande legado de Bento XVI são os seus textos teológicos, que ainda serão estudados por muitas gerações.
Entre seus clássicos acadêmicos está o livro “Introdução ao Cristianismo”, que compila lições universitárias publicadas em 1968. Amante da música clássica, Bento XVI tocava piano e tinha apreço especial pelas obras de Mozart. Já a série de livros “Jesus de Nazaré”, que contou a história da vida de Jesus com toques de história e teologia, foi um best-seller em muitos países.
Além das dezenas de livros que escreveu quando foi professor de teologia, bispo, arcebispo e Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Ratzinger assinou três encíclicas (documento mais importante escrito por um papa) e deixou uma quarta pronta, para ser assinada por Francisco.
Especialistas notam mudanças no tom e nas teses defendidas por ele ao longo da vida. A encíclica Caritas in veritate (“Caridade na verdade”), desafiou o mundo a encontrar modelos de desenvolvimento social e econômico mais humanos, centrado no amor.
“O Papa Ratzinger é um homem de estupenda e belíssima inteligência”, disse o cardeal austríaco Christoph Schönborn, arcebispo de Viena, amigo e discípulo de Bento XVI, em uma longa entrevista ao canal italiano TV 2000. “Sua força, no entanto, não é só essa, mas a simples e humilde amizade com Jesus que transparece em todos os escritos e em tantas de suas belas homilias.”
Críticas
Tanto como papa quanto como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – órgão responsável pela disciplina e os dogmas – Bento XVI foi muito criticado por algumas alas da Igreja. Dois grupos, em especial, viram nele uma espécie de algoz ao menos em alguns momentos de sua vida.
Primeiro, os que pediam mudanças progressistas nas doutrinas morais da Igreja, especialmente no que diz respeito à moral sexual. Assim como João Paulo II, Bento XVI adotou uma linha predominantemente conservadora nessas questões.
Em diversas ocasiões, ele manifestou, por exemplo, ser contrário ao aborto em qualquer circunstância, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, à distribuição de preservativos como política pública, ao fim do celibato dos padres e à flexibilização das normas da Igreja para pessoas em segunda união.
O segundo grupo que criticava o Papa era formado por representantes da teologia dita “de esquerda”, como os chamados teólogos “da libertação”. Esse movimento típico da América Latina nasceu nos anos 1960 e 1970 e conciliava a defesa dos pobres na política com o cristianismo. Parte dos membros dessa linha adotou um viés marxista e, durante o pontificado de João Paulo II, foi alvo de sanções disciplinares. No Brasil, ficou conhecido o teólogo Leonardo Boff.
O padre jesuíta alemão e português Andreas Lind explicou ao G1 que alguns “excessos de mudança radical, próprios dos anos 1960, realizados tanto na sociedade como em alguns setores da Igreja, talvez expliquem a atenção prestada por Bento XVI à continuidade com a tradição do passado”. Segundo Lind, uma das grandes contribuições de Ratzinger foi o diálogo entre fé e razão.
“O senhor é o fim do velho ou o início do novo?”, perguntou o biógrafo Peter Seewald a Bento XVI. “As duas coisas”, respondeu o papa aposentado.
Infância e adolescência
Joseph Aloisius Ratzinger nasceu em Marktl am Inn, município do estado da Baviera, na Alemanha, e cresceu durante o período em que o regime nazista ganhou força na região. Seus primeiros anos de vida, até a adolescência, foram passados em Traunstein, perto da fronteira com a Áustria. Foi na região que o futuro papa começou sua formação cristã e cultural.
Ele chegou a participar da Juventude de Hitler durante a adolescência, o que gerou polêmica após sua eleição – a participação no movimento era obrigatória desde 1939 e o Vaticano justifica que, assim que pôde, o jovem Ratzinger optou pelo seminário.
Em 1943, já mais para o fim da Segunda Guerra Mundial, Ratzinger e seus colegas de seminário foram convocados para os serviços auxiliares antiaéreos. Ele não chegou a participar das batalhas devido a uma infecção em um dos dedos, que não permitiu que ele aprendesse a atirar.
Foi ordenado padre em 1951 e bispo em 1977. No mesmo ano, o Papa Paulo VI o nomeou cardeal. Nunca deixou de escrever e dominava seis idiomas: alemão, italiano, francês, latim, inglês e castelhano, além de ter conhecimentos de português.
Chegou a ser arcebispo de Munique, na Alemanha, e de 1981 a 2005 ocupou o cargo de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, tornando-se braço direito do Papa João Paulo II, no comando das questões morais. O objetivo desse escritório vaticano é justamente prezar pela manutenção das tradições e pela conservação das doutrinas católicas.
Eleição ao papado
Sua proximidade com o Papa fez com que Ratzinger se tornasse o favorito no conclave que o elegeu, em 2005. Muitos diziam que o seu papado seria de transição. No conclave, foram necessárias quatro votações para que um único nome recebesse mais de dois terços dos votos.
Ao aparecer em público como papa pela primeira vez, ele disse:
“Amados Irmãos e Irmãs, depois do grande Papa João Paulo II, os Senhores Cardeais elegeram-me, simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor.
Consola-me saber que o Senhor sabe trabalhar e agir também com instrumentos insuficientes. E, sobretudo, recomendo-me às vossas orações.
Na alegria do Senhor Ressuscitado, confiantes na sua ajuda permanente, vamos em frente. O Senhor ajudar-nos-á. Maria, sua Mãe Santíssima, está conosco. Obrigado!”
O último papa a adotar o nome de Bento havia sido o italiano Giacomo della Chiesa, entre 1914 e 1922, o Bento XV. E São Bento, o fundador da Ordem Beneditina, é o padroeiro da Europa.
Bento XVI visitou o Brasil em maio de 2007, entre os dias 9 e 13, para dar início à 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, em Aparecida, no interior de São Paulo. Foi nesta ocasião que Frei Galvão foi canonizado, tornando-se Santo Antônio de Sant’Anna Galvão, o primeiro santo nascido no Brasil.