Era meio dia e o sol castigava a cidade. Um calor terrível. O sinal fechou e eu parei. Duas filas se formaram com outros automóveis parados também, esperando o sinal abrir. Lá da frente veio caminhando entre os carros um homem muito magro, rosto seco, não falava. Apenas empunhava um papelão onde se lia “Estou com fome”. Dos carros ninguém deu importância àquele homem, ninguém baixou o vidro para uma esmola, talvez com receio do ar condicionado escapar do automóvel?
“- Dotô, mermo quando eles tem pena e dá uma grana, de vez em quando eles humilha nois. Fica dizendo que o dinheiro não é pra nois comprá droga”.
Continuei descendo pela avenida Rui Carneiro, dobrei à direita depois do mercadinho em busca de uma vaga para estacionar e fui vendo à esquerda um ajuntamento de sem tetos. Na última vez que os contara, ainda durante a pandemia, eram 8. Sei porque além do pessoal do Padre Zé distribuindo quentinhas éramos dos poucos que saiam de casa para uma caminhada diária, levando sempre algo para eles comerem.
“- Se a gente dizer que é pros fí ninguém acredita, porque os pirralho tão no barraco. Se nois trais eles pra cá tem gente que fica com raiva. Eu digo que é pra tomar cana, aí eles ri e dá uns trocado”.
Logo a seguir, em frente onde outrora funcionou a Adega do Alfredo outro ajuntamento de miseráveis. Semana passada eram quatro. Agora dobrou a quantidade. Não consegui vaga e ao chegar na esquina contei nove desvalidos da sorte espalhados pela calçada do muro em frente.
“-Tem gente que reclama que nois fede. Tem onde tomar banho não. E sem sabonete nem pasta serve de nada tomar banho. Eu mermo, se quarquer um me der sabonete ou pasta eu vendo pra comprar de pão…ôxi, ficar cheroso e a barriga latino…”.
Entrei na estreita ruela que sai em frente à Igreja e parei para dar passagem a vários fieis que desembarcavam de seus automóveis, todos bem vestidos, dirigindo-se à missa.
“- Dotô, me diga mermo, se Deus está aculá (disse apontando com o queixo para a igreja), custava nada ele chegar aqui pra ajudar nois?”.
Tenho absoluta certeza de que neste natal muita gente vai dar a esse pessoal uma parte do que sobrou das suas ceias. Por um dia eles comerão, preparando-se para outro ano de abandono e fome.
“- Esse povo, esses político num sabe o que é fome não. Dói na barriga”.
Repetindo Leandro Gomes de Barros: Por que existem uns felizes e outros que sofrem tanto? Nascemos do mesmo jeito, moramos no mesmo canto. Quem foi temperar o choro e acabou salgando o pranto?