O Dia de Finados passou
O Dia de Finados, 2 de novembro, passou e não volta mais. Mas, os finados não passaram, tampouco passarão. Quem morre se enclausura numa morada quanto ao tempo, de modo indefinido, ou seja, não volta a viver a mesma vida, porque ninguém morre duas vezes. É como se estivesse num quarto escuro, sem portas, sem janelas, sem algum buraco no piso ou no teto. Contudo, tais paredes são transponíveis pelos espíritos, acredito, ultrapassam eles as mais grossas; entram e saem das celas mais hermeticamente fechadas, sem precisarem de habeas corpus; para as almas, tudo é igual, tanto faz construírem alcovas com ou sem corredores… Gozam, quanto ao poder de ir e vir, rindo dos bloqueios, sendo ou não constitucional, de absoluta liberdade.
Contudo, nada mais podem fazer, o tempo de fazer foi em vida, por isso, carpe diem! Ou aproveitemos o dia! Tampouco, dentro desse quarto escuro, de imagem metafórica sartreana, nada se corrige, mesmo o menor defeito ou qualquer crime cometido em vida, é eternamente sentencial: as autocorreções só acontecem enquanto vivemos. Não quero desestimular alguém que já morreu, tampouco tirar-lhe a fé, ele se desprendeu, sem dieta, do peso do corpo, e ficou muito mais leve do que uma pluma, invisível ou visível quando quiser aparecer, tornando-se para uns assombração. Mas, soltos, fora do quarto escuro, quanto à ação, especialmente para se corrigirem das coisas do passado, continuam no quarto escuro, sem qualquer liberdade para isso. Assim é aos vivos que são, nesse sentido, perdulários do tempo. Os humanos vivos têm esse defeito: não se convencem de que precisam de correção, antes de morrer.
O Dia de Finados é uma comemoração geral, sem muita alegria como se festeja o Dia de Todos os Santos. Amiúde, a cada santo o seu dia; por exemplo, 27 de setembro é o de São Cosme e Damião, quando, principalmente cariocas e baianos, distribuem bombons e pirulitos às crianças. Já os falecidos são normalmente lembrados na data em que morreram, com missas e orações, nos sétimos, trigésimos e centésimos dia do aniversário de morte. Depois do centésimo, a comemoração sofre esquecimentos, a não ser se o lembrado é um algum vulto, na sociedade onde viveu, e tenha assumido atitudes pelo bem comum, enquanto viveu ou até morreu como herói.
Algumas culturas, especialmente orientais, choram muito quando morre alguma criança ou algum jovem que, no limiar da vida, teve sua existência tolhida; interrompeu-se bruscamente o caminho da vida, sem experimentar coisas do futuro. Quanto a isso, a natureza demonstra os quilômetros contados dessa estrada, como se fossem sinais vitais de que o caminho está chegando ao fim. A esses, os orientais brindam a longevidade usufruída, rememorando seus feitos e cantando loas às memoráveis existências. Nesse sentido, ao final do filme Sonhos, de Akira Kurosawa, vê-se um festivo cortejo que realiza o féretro de uma japonesa de 102 anos, com essa explicação. Meus respeitos e homenagens aos que já caminharam muito e que já demonstram cansaço ao praticarem o proverbial “a vida é uma luta”, mas ainda caminham dispostos a tudo… Enfim, não esqueci o Dia de Finados, a crônica relembra que os mortos sempre continuam… Essas são minhas letras também para que se supere o desprezo pela morte, e, sim, tendo-a como um fato normal da vida. Lembremo-nos de Catão de Útica (95 – 46 a. C.): “Toda a vida dos filósofos é preparação para a morte”.
Damião Ramos Cavalcanti