De camisa branca, calça e sapatos sociais Reginaldo dos Santos, 57, é categórico ao se referir ao apelido pelo qual foi conhecido por mais de 30 anos na cracolândia. “O Mafalda morreu, agora eu sou o ‘salveiro’ de Jesus”, diz segurando uma bíblia com a figura de um leão na capa.
Na cracolândia, “salveiro” é quem “dá o salve”, o responsável por fazer a comunicação entre a polícia, o crime organizado e o fluxo, como é chamada a aglomeração de usuários de drogas no centro de São Paulo.
“Eu era o comunicador, o negociador”, diz ele sobre a função que exerceu nos últimos nove anos na cracolândia. “Chegava a GCM (Guarda Civil Metropolitana) [no fluxo] e não tinha ninguém lá para falar [com os guardas]. Eu, então, perguntava o que eles queriam. Não conseguia barrar a ação, mas dava tempo de organizar as pessoas. Eu mantinha a integridade física de todos com o diálogo”, lembra ele, que nega ter feito parte de qualquer organização criminosa.
Durante as ações policiais recentes para prender traficantes e dispersar o fluxo era ele quem repassava as ordens da GCM aos usuários de drogas para se manterem sentados no asfalto e formarem fila para serem revistados. Quase sempre usava calças largas de palhaço em alusão à sua carreira de 23 anos como artista circense que lhe rendeu o apelido da personagem que costumava interpretar no picadeiro, a Vovó Mafalda.
Segundo as investigações da Polícia Civil, Santos é classificado como “lagarto”, nome dado aos usuários que gozam da confiança dos traficantes da cracolândia e, geralmente, prestam serviços para sustentar o vício em crack. “Não há indícios de que ele traficava”, diz Roberto Monteiro, delegado da 1ª Seccional do Centro.
Quando não estava no fluxo, ele ficava em um quarto de hotel próximo onde era procurado com frequência para resolver conflitos entre usuários. “Eu não tinha sossego. Era [chamado] de dia e de noite”, diz.
Há pouco mais de um mês, a despedida de Mafalda foi definitiva. “Cansei. Eu ajudava todos, era padre, psicólogo, conselheiro sentimental, juiz, mas quando precisei de ajuda, fiquei deitado sozinho em um sofá no meio do fluxo. Não tinha forças nem para buscar comida”, lembra sobre o período recente em que contraiu pneumonia e tuberculose.
“Nunca estive tão mal a ponto de procurar ajuda”, diz sobre o momento em que tomou a decisão de abandonar o vício. Ele conta ter chegado a consumir 15 gramas de crack por dia. “Eu fumava [crack] todo dia, sem parar, era como fumar cigarro”, lembra.
Foi quando finalmente aceitou o convite para deixar a cracolândia e buscar tratamento na comunidade terapêutica do projeto Da Pedra para a Rocha, que resgata usuários de drogas das ruas de São Paulo há dez anos. Era uma sexta-feira a tarde e integrantes do projeto distribuíam refeições na cracolândia.
“Quando ele pediu ajuda, eu nem acreditei porque o via há anos na cracolândia. Tive que pedir a outro irmão para buscá-lo porque sabia que não podia esperar [até o fim da distribuição]”, conta José Roberto Floriano, o Betão, ex-traficante que integra o projeto social dedicado a recuperar dependentes químicos mantido por José Ricardo Cypriano, 47, o pastor Rica.
Ex-usuário de drogas, o pastor da igreja Bola de Neve mantém outras duas comunidades terapêuticas em São Paulo. Nas unidades, todo o trabalho é feito por ex-internos que também dispõem de um abrigo após o tratamento até conseguirem retomar a vida em sociedade. Santos, por exemplo, trabalha na cozinha e ajuda no preparo das refeições dos internos.
O projeto mantém parceria com empresas que se disponibilizam a empregar os ex-dependentes químicos. Segundo o pastor, 12 estão trabalhando após passarem pelo projeto. “Tem que trazer para junto, não adianta só oferecer tratamento e depois cada um que se vire”, diz o pastor.
Em tratamento, Santos conta não ter tido crises de abstinência, apenas dificuldade em obedecer aos horários das refeições, em vez de comer quando quer, como costumava ser sua rotina. “Eu tinha tudo na mão na hora que queria, não pagava por nada”, conta sobre o sistema vigente entre os usuários em que pedras de crack são usadas como moeda de troca para quase tudo.
Os anos de vício em drogas o distanciaram da família e, há 20 anos, não tem mais contato com nenhum parente. Ele calcula ter 19 filhos. “Eu era palhaço, ladrão de mulher, como diz o ditado”, diz sobre a carreira como artista circense. “Tenho o teste de DNA de quatro filhos”, continua.
A vida itinerante entremeada pelo vício em drogas começou aos 17 anos, quando que ele decidiu deixar a família em Campinas, no interior de São Paulo, onde morava para seguir o circo. “Eu me apaixonei pela bailarina e fui embora”, lembra. “Fui artista circense por 23 anos, rodei quase o Brasil todo e tive dois circos”.
Ele diz que o primeiro contato com a droga foi aos 13 anos, quando experimentou cola e maconha. Em um dia de folga das apresentações no circo, no largo do Paissandu, no centro de São Paulo, Santos experimentou crack pela primeira vez, quando tinha 18 anos. “Na época, [a droga] se chamava casquinha. Foi o beijo da morte, nunca mais larguei”, lembra.
Entre os muitos números circenses que conta ter realizado ao longo de 23 anos, o papel de palhaço é o que ele acredita fazer melhor. “Fazia o quadro da família Buscapé em que entram vários palhaços dentro de um táxi maluco. Eu fazia a mulher idosa, a vovó”, lembra sobre o início das atrações como vovó Mafalda.
Uma semana após ter deixado a cracolândia, Reginaldo pediu para voltar ao fluxo de usuários “e sentir a emoção de ter deixado aquele lugar”, diz ele.
As visitas passaram a ser semanais, toda sexta-feira a noite, para distribuir pratos de sopa aos usuários de drogas. “Quando eu chego lá, grito ‘e aí, família? Chegou a sopa de Jesus” conta. “As pessoas choram ao ver a minha transformação. Se eu consegui [deixar o vício], elas também podem. A mensagem é essa”, diz o ex-frequentador da cracolândia que conta já ter convencido outros seis usuários a buscar tratamento em pouco mais de um mês.