A dualidade superável
Conta-nos o pensador Abiaté, com boa e larga experiência na vida operária, que uma das grandes empresas da nossa maior Metrópole era centro de procura de trabalho por parte da atual multidão de desempregados, reinante no país, e, no seu pátio havia sempre uma longa fila à espera de uma vaga. Isso, internamente, ameaçava já quem estava empregado, sobretudo diante da atual política pública de instabilidade no emprego. Era um mundo de ansiedades que criava um péssimo relacionamento humano: um não poderia olhar para o outro, para não motivar desconfianças de que o seu lugar de trabalho estaria sendo cobiçado… A convivência andava insuportável. Reinava não um lugar de efetivo trabalho, mas, de modo agudo, de concorrência à vaga do trabalho do outro.
Após longo feriado, os murais amanheceram com este esquisito e apreensivo aviso: “Atenção! Falecimento! Morreu, ontem, de morte súbita, quem o perseguia, prejudicando sua vida na empresa. Hoje, todos, sem exceção, inclusive diretores e chefes, são convidados a, obrigatoriamente, comparecer ao velório que se realiza na Quadra de Esporte, das 7 às 17 horas. Após o expediente, ocorrerá o sepultamento. Ao se rever, pela última vez o falecido, imediatamente, o companheiro ou companheira deve se dirigir ao seu posto de trabalho. Assina: Departamento de Pessoal”.
Depois de ler tal mensagem, ninguém se dirigiu aos postos de trabalho, e sim àquela afluência. Jamais um anúncio da diretoria tinha sido tão respeitado. Logo depois de bater o ponto, apressaram-se para ocupar seu lugar na longa fila, que começava na entrada da Quadra de Esporte e findava nas imediações do Portão Central que já se encontrava fechado e com guarda de sentinela. Lá estava o caixão, para o qual todos se apressaram, visivelmente de luxo, 2,00 metros por 0,50, cheio de flores, em que poder-se-ia ver apenas os dois bicos dos sapatos pretos e o lugar da cabeça. Proibida estava a aglomeração ou a formação de grupos, todos deveriam manter reverência e respeitoso silêncio, sentidos, como se estivessem diante do morto exposto. Na fila, aqui e acolá, gente se preparando para fotografar. Poucos comovidos, mas improvisaram buquês de variadas flores, colhidas por ali mesmo, nos jardins e pátio da repartição. Raros se saudavam, mesmo naquele corredor de tristeza, com um costumeiro “tudo bem?”.
A fila avançava, os que voltavam se mostravam satisfeitos, porém pensativos, refletindo. Pois, ao observarem o esquife, cumpriam a ordem de imediatamente pegarem seus instrumentos ou máquina de trabalho. Depois do ritual, todos sem comentários, meditativos, refletindo, porque ao se debruçarem sobre o caixão, tinham se deparado com o reflexo de um limpo espelho e visto seu próprio rosto, surpreso, espantado e constrangido, pois todos eram o visitado defunto perseguidor. E somente o boêmio, que vivia assobiando, ao sair da Quadra, filosofou: – A morte nos obriga a pensar sobre a vida…
Cada um iniciou um diálogo consigo mesmo, constatando assim que, dentro de cada um, havia uma dualidade superável; uma espécie de dupla personalidade: os perseguidos são perseguidores ou os perseguidores, os perseguidos… Infelizmente, após o irrealizado sepultamento, isso não está morrendo, ainda viverá extensa longevidade, até que haja trabalho para quem quiser trabalhar; uma diminuição da ganância, da inveja, coisas difíceis de acontecerem. Assim como a considerada amante do perseguidor, através de fuxicos e boatos das companheiras, vendo-se no espelho, não esboçou alguma emoção de perda, tampouco chorou.