Lá perto de Pilar, entre a cidade e o Café do Vento, havia uma rezadeira, famosa pela fé dos beradeiros e pessoas do campo, até da cidade e de gente grossa da redondeza, procurando cura de uns variados males que vinham sofrendo, geralmente causados por mau olhado. E tinha uma coisa, diferente dos médicos e farmacêuticos, o benzido só pagava depois que a melhora acontecesse. Uns, muito pobres, nem pagavam, eram dispensados pela bondade da virtuosa mulher, nessa popular sagrada missão. Serena, meditativa, com nariz afilado como os dos ciganos e olhos e cabelos compridos escuros como as penas da graúna. Sentada no chão batido, parecia uma vestal, pouco movimentando o corpo, como os monges gurus nas montanhas do Tibete. Impressionante! Suas palavras eram indecifráveis, quando rezava e quando não orava, falava pouco, mais com a cabeça e com os olhos. Só Deus compreendia o que ela dizia, rezando pelos outros, benzendo coisas. Depois dali, os bentos saíam com uma aura sobrenatural, como se tivessem sido abduzidos a um outro mundo.
Este nosso mundo é cheio de gente que ora ou reza somente para si, mal reparte as atenções com o próprio Deus. Implora pela sua saúde ou contra os agouros e pragas, que lhe foram jogadas ; sempre também para ganhar mais dinheiro, muito, às vezes mais do que já tem, não se incomodando de se tornar um camelo e não passar pelo fundo de uma agulha… Geralmente se apega aos jogos de azar, pensando que Deus pararia a roleta, exatamente, no número do bilhete que jogou. Uma mentalidade assim torceria, de joelho, que Deus entrasse em campo e decidisse o placar do jogo entre Vasco e Flamengo. Já os devotos da beata rezadeira pediam que ela curasse alterações na saúde, causadas por olhos maus, como boca troncha, perebas sem cura, cobreiro, inchaços, espinhela caída, mulher parida, dor de espinhaço ou de cabeça que doíam sem parar. Enfim, outros nomes estrambólicos, até jocosos, muitos encontrados em Câmara Cascudo e na prodigiosa obra de Arnaldo Tavares, Estudos Etnomedicinais Sobre Plantas (vol I) e Crendices Populares Sobre a Bouba e as Bananas (vol II). Nesses livros, nomes estranhos, mas de claríssima explicação…
As rezas ou as orações acompanhavam a mão direita da rezadeira, com um ramo verde de arruda, que sinalizava o fim do rito, murchando, murchando até perder a cor e o viço. O recinto se perfumava com cânfora, óleo usado para espantar os maus espíritos. O crente Zé de Bento doutrinava, mais de duas vezes, que não existe reza, somente oração: “Nós não rezamos, nós oramos”. Muitos não entendiam a mínima diferença. Até hoje não distingo, acho que reza e oração igualmente são diversas linguagens e tentativas de falar ou conversar com Deus, assim como são as diversas religiões. Talvez orar é dizer palavras mais espontaneamente; rezar, repete, ritualisticamente, formas de oração escritas ou decoradas. Uso as duas maneiras. Não vou mentir, já rezei muito pela saúde dos meus familiares e dos amigos, sem a insistência de que Deus me obedeça… Ele fique à vontade, como se reza no Pai Nosso. Tudo estaria muito bem, se o mundo estivesse sempre na ordem como a gente quer, todos nós bem de saúde, ninguém doente. Mas o que incomoda acontece, não sei o porquê de levar bons, corretos, íntegros, ao sofrimento e também à morte… Enfim, em ambos os casos, tanto faz rezar como orar, Deus tudo escuta e tudo compreende, desmentida a impressão fortemente poética, em Súplica Cearense, onde o sertanejo, aperreado com a seca, rezando, pediu muita chuva sem parar, então exageraram-se os raios, os trovões, os relampejos, tempestades e inundações, motivando “o pobre coitado” pedir perdão, por não saber fazer oração. Ele soube, excesso de humildade, todos sabemos. O suficiente é não se cansar de conversar com Deus, às vezes, pedindo aos santos e à Maria, que estão mais perto d’Ele, abrirem caminho, e sobretudo considerar o necessário: a fé.