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O carnaval  não vai passar (Damião Ramos Cavalcanti)

 

                      O carnaval  não vai passar

        Ainda não deixará de estar a caminho, já estaria anunciado por alguns blocos, pela TV, mas ele vai não chegar. Ele chegaria porque, finalmente, ninguém é de ferro para suportar tanto trabalho e amarguras do ano inteiro, sem perspectivas do tradicional carnaval. Ora, se ele não for samba, frevo ou dança, na rua, em casa, será repouso. A pandemia, que tem como porta-estandarte, o coronavírus, também com a fantasia de Covid-19, afetou até quem se preparou  para o descanso ou para meditações, retiro ou orações, o que seria  sobretudo para exorcizar inseguranças, fantasmas que rondaram as nossas portas, como o vírus ameaçador. Bicho perigoso, que nos atormenta sem sair da rua, também na espreita, como nos ferrolhos das nossas portas, na maçaneta dos transportes, mais  atormentadores do que o próprio homem, enquanto se oferece para ser agente de contágio. Na humanidade há indivíduos que se comportam como não fossem gente, mas parceiros do que é letal. Esses egoístas, achando-se protegidos (e não o são), capacitam-se para contaminar os outros. Com certeza, baterão na sua porta, vestidos como urso, cavalo ou boi. Contaminar os outros com um vírus letal é crime, não deve ser divertimento, como se fosse uma brincadeira, sobretudo, disfarçadamente, num carnaval proibido.
    Lazer não é novidade, especialmente quando ficar em casa também é lazer, termo que provém do verbo licere, que significa “ter o direito de ser permitido”. A humanidade sempre se permitiu suas grandes festas ao lazer, incluindo, dentre essas, o carnaval. Numa dessas festas, está na Bíblia, o próprio Noé tomou um porre de vinho e desnudou-se, depois de embriagado. Recoberto pelo filho, com um lençol, terminou por castigá-lo, alegando que estava fora da sua consciência. Baco (Dionísio ), deus do vinho e filho de Júpiter, conquistou a Índia, acompanhado de homens e mulheres, tendo como armas de guerra apenas alguns tambores. Suas festas escandalosas eram acompanhadas por ninfas, sátiros, pastores, pastoras, sem contar, claro, com as Bacantes – suas sacerdotisas. Daí o termo ” bacanais “, até hoje usado para festas orgíacas. Contam ou consta, nesse contexto, que Baco fundou a primeira escola de música. Também era chamado de Liber (Livre), uma vez que suas orgias eram incontroláveis, pois o vinho libera os instintos e faz esquecer o bom senso, ficando “nada proibido”… Do seu nome “Livre” surgem as “festas liberais”; o carnaval é uma delas. Condenado por Juno à loucura, Baco andou vagando pelo mundo, espalhando carnavais por aí. De tudo isso, conclui-se que música e vinho podemos ter em casa, no lazer, fugindo do contágio, adiando o carnaval. E não nas ruas, nos blocos e nos clubes, reunindo os contagiados e contagiantes numa força só.
       Avisados, os tamborins já não estão esquentando. Lá, no Rio de Janeiro, consequentemente, as mulatas não descerão o morro, deixando para depois se mostrarem  à luz dos refletores. Isso constrange quem vive para o Carnaval. Mas, evitar o carnaval para viver é o lícito, é o lazer. Abstraindo-se de eventuais multidões, os mistérios dos sons podem vir às nossas casas. Outras razões talvez perturbarão as noites de solidão ou o lazer dos homens apaixonados, estremecendo os seus amores e as suas vidas – estágios obrigatórios da fantasia existencial.
           Depois de haver passado o ano inteiro, vigiando esperanças, aparando amarguras, contornando desencantos, e sabendo que a vida, no tempo sem fim, está lentamente se extinguindo, contudo, ela não deve ser apressada pela “letal pandemia”. O astuto, que cair na gandaia de carnaval  improvisado, estará respirando na quarta-feira de cinzas ?                    Carnaval, só depois da vacina…
 
 

Damião Ramos Cavalcanti