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As histórias de Seu Januário ( Thomas Bruno Oliveira )

 

As histórias de Seu Januário
 

Seu Januário e seu inseparável carrinho de picolé – Acervo familiar

Quase sempre na noite das sextas-feiras, a meninada da rua se reunia na calçada da casa de Joel, que era um dos mais velhos da turma. Aquele era dia das histórias de trancoso e das assombrações contadas por seu pai. Para alegria, divertimento e também pavor dos mais medrosos. Seu Januário, conhecido popularmente como “Dé” ou “Seu Dé”, passava o dia perambulando as ruas do bairro vendendo picolé em um carrinho azul claro. Sua corneta mais parecia um pequeno berrante, só que bem mais modesto, feito de mangueira e plástico enrolado por tiras de borracha, embora a lógica do toque ser a mesma e aquele som agudo e longo era ouvido de muito longe. Voltava para casa mais ou menos entre 3 e 4 da tarde. Antes de apontar na esquina, seu cão Rossi saía desembestado e corria em círculos na esquina, ali a gente já sabia que ele estava chegando.

 

O lugar mais disputado era o batente que dividia a calçada do vizinho esquerdo, o de cima, já que a rua possuía uma certa inclinação. Ali cabiam uns cinco meninos. No meio fio, que sobressaía da calçada mais baixa, cabiam outros tantos e tinha quem gostava de se escorar no poste, de pé. Geralmente quem ocupava esse posto era Ângelo, o mais medroso, estava de canelas prontas para correr para casa quando o medo o apavorava. Seu Dé ficava de pé no estreito portão ou sentado em um tamborete. Camisa branca de botão, aberta pela metade. Exibia uma medalhinha. Alto, moreno, olhos semicerrados e um inseparável bigode, sua feição ficava mais enigmática quando estava de boné. A luz branca e fraca do poste naquela calçada, alumiava todos, mas a aba do boné engolia seu rosto em sombras, de onde vinha aquela voz média, com tons agudos e uns chiados, marcante. Para aqueles meninos, Seu Dé era de dia, vendendo picolé, embriagando-se na branquinha e sendo repreendido por sua sempre amável Dona Guia. Ali, à noite, aquela figura brincalhona se transformava em Seu Januário, o sério contador de histórias.

 

Tardezinha, após as inúmeras brincadeiras do dia, inclusive a boa e velha jogada de bola (não se chamava nem pelada nem futebol, era ‘jogar bola’), a criançada se recolhia depois das cinco, aquele cair da tarde onde o sol é engolido pela noite escura, era o campo fértil de atuação do papafigo. Engraçado que o resto da noite era mais tranquila do que aquele crepúsculo, veja só. Nesse intervalo, se tomava banho e jantava. Após isso, estavam todos prontos para o “terceiro turno”, a noite. Um a um iam se reunindo: Martiele (Meu), Tião, Tuca, Ângelo, Robson, Fabrício, Boquinha, Pií, Quinho, André, Tales, eu e mais uma “reca” de garotos. Entre seis e sete horas, todo mundo lá na calçada.

 

Começava assim: “– Vocês não sabem, mas… lá na rua da SAB tem uma mulher que é doente, o couro dela cai. Dizem que foi uma maldição. Sabe lá em cima, onde tem um curtume e um matagal? Por ali viram um lobisomem e é verdade, porque eu me lembro que quando era menino feito vocês, morava lá no sítio Geraldo; nasci em Alagoa Nova, terra onde cururu bate tijolo (nunca soube o que quer dizer essa expressão!), lá vi um lobisomem bem grande, fazia uma zuada danada e corria como ninguém, na mata do urubu…”. Uma a uma as histórias eram debulhadas, algumas repetidas a pedido de um ou outro, o que revelava ainda mais detalhes de determinadas situações.

 

Em sua casa, Seu Januário “agarrado” n’uma galinha de capoeira e no velho refrigerante Sacy – Acervo Familiar

 

Outra que ele contava: “– Vocês sabem que caiu um avião ali na farinhada? Faz muito tempo e quem estava nele era Didi dos Trapalhões. Morreu um monte de gente e lá em cima; a noite, se for lá vai ver as almas penadas procurando as coisas que perdeu… Lá em Alagoa Grande tem uma lagoa que tinha muito sapo cantador e o nosso Frei Damião tava fazendo uma celebração e eles atrapalhando. Foi quando o Frei levantou a mão em direção a lagoa e mandou que os sapos se calassem. E se calaram mesmo! Até hoje pode ter o sapo mais cantador do mundo, mas se cair lá, fica mudo”. De fato, a lagoa existe, Lagoa do Paó, e a lenda de Frei Damião também. Ligado a essa história, ele contava outra: que lá pelos anos 50, o Açude de Bodocongó praticamente secou e lá no meio tem uma grande rocha. No fim da tarde se via na pedra uma serpente enorme e os mais velhos diziam que foi uma mãe que jogou um bebê dentro das águas e para não morrer, se transformou em cobra. Em tom de clemência Seu Januário dizia que tinha que trazer Frei Damião para rezar o Açude para tirar aquele encanto.

 

As histórias ficavam ainda mais envolventes quando era lua cheia. “– Noite de lua branca aparece muita coisa…” e tudo era insondável, enigmático. Taperas velhas em sítios remotos escondiam botijas, com elas assombrações e assim toda uma geração de meninos teve a grande oportunidade de viajar nessas histórias marcantes, outras arrepiantes, do velho Januário, lembranças difíceis de esquecer.