A música de Imani
Imani, um gafanhoto africano, traz a música para o novo mundo
quando viaja a bordo de um navio escravo…
Nascido durante a época das plantações no fim do século XIX, o meu avô W. D. era um
homem do Era uma Vez, que morava no Aqui e Agora, porque a vida o tinha ali colocado. Era
conhecido em cinco condados como um contador de histórias que sabia contar na perfeição.
Vivia entre o Era uma Vez, o Aqui e Agora e O Que Vai Vir. Eram pessoas como ele que
mantinham a tradição viva.
W. D. tinha uma velha bengala que levava para todo o lado. Dizia que tinha sido feita com
pranchas do navio de escravos que o tinha trazido. Achava que, enquanto tivesse aquela
bengala, nenhum navio de escravos o apoquentaria mais. De vez em quando, dava a volta à
casa, arrastando a bengala pelo chão, desenhando uma linha. Depois, chamava-nos com a mão
nodosa e íamos todos a correr para dentro do círculo que ele traçara. Nesse espaço, W. D.
atravessava o rio do tempo como se este fosse uma mera poça de água da chuva. Com as suas
primeiras palavras e um cheirinho do ar da noite, entrávamos todos na terra do Era uma Vez,
como se fosse Aqui e Agora.
— Tenham cuidado — advertia-nos, enquanto nos aproximávamos dele. — Não molhem
os pés no Rio do Tempo, atravessem com cuidado para a terra do Era uma Vez. Ora ouçam!
Era uma vez um tempo em que não havia música no planeta. A música era uma iguaria tão
cobiçada que os Antepassados a guardavam para si, e dela só comiam um bocadinho todos os
dias. Estava guardada numa prateleira do céu nocturno, em taças enormes, negras e brilhantes.
De vez em quando, uma rajada de vento ou uma tempestade abanava as taças, fazendo com
que caísse um pouco de música na Terra.
Mas o mundo nunca soube o que perdia, porque todos se
abrigavam. Todos menos Imani, uma criatura que adorava
música. Ao contrário dos outros gafanhotos, Imani adorava que
a chuva lhe caísse em cima. De cada vez que havia uma
tempestade, descobria que lhe tinha sido dado um presente.
Conseguia esfregar as patas traseiras numa folha de planta ou
numa tira de erva, e obter assim os sons mais maravilhosos.
O que lhe acontecia era algo tão bom que não queria
guardá-lo só para ele. Quando tocava, com alegria, numa folha de palmeira ou de vinha,
desejava que o resto do mundo pudesse partilhar o seu presente. Então, numa noite especial
em que tinha caído uma chuva suave, Imani escolheu uma tira de erva do Serengeti para tocar.
Fez uma vénia e dedicou a sua atuação aos Antepassados. Tocou para o céu escuro durante
horas. Tocou enquanto interiormente entoava uma prece. Quando a última nota se fez ouvir,
murmurou com toda a fé de que era capaz:
— Por favor, Antepassados, dêem música ao mundo.
Quando os Antepassados olharam para baixo e ouviram as primeiras notas da canção de
Imani, viram quão feliz ele estava.
— É um gafanhoto músico. Devíamos dar-lhe música.
Rindo e dançando tão ruidosamente que balançavam os Céus e a Terra, verteram toda a
música que tinham nas taças negras. Um banho de melodias caiu sobre Imani, e o resto da
Terra apanhou as restantes como uma esponja apanha a água. Havia agora música por todo o
lado e em tudo. E o dom da música foi atribuído a todos os gafanhotos, embora só pudessem
tocar com as pernas, não com pétalas ou ervas!
Também foi atribuído aos leões e às girafas, às serpentes e aos pássaros (estes tiveram
direito a uma grande parte porque estavam a voar no momento em que a música caiu), às
árvores, às montanhas, aos catos e às pessoas! Se não acreditam, batam ou agitem com
gentileza tudo o que há na Terra e ouçam a música a sair…
No início, as pessoas juntavam as suas vozes às canções de Imani. Depois, os músicos
criaram instrumentos para tocar como ele, trazendo à superfície a música escondida nas canas,
nas árvores, nas peles dos animais, no marfim, no cobre, no bronze…
E assim se foram criando flautas, baterias, banjos, guitarras, xilofones, liras e harpas.
Em breve tudo se fazia ao som da música. Os camponeses faziam as colheitas ao som dela,
os reis eram por ela embalados quando davam longos e meditativos passeios. Os trabalhadores
construíam aldeias ao som de canções e os amantes cantavam cantigas de amor. Os
mercadores apregoavam as virtudes da sua mercadoria, e os reinos saudavam a passagem do
poder de geração em geração através de instrumentos e de árias.
Imani procurava em todo o lado novas folhas que pudessem ser tocadas. Viajava por
montanhas de dia e tocava na folhagem à noite. Lavradores, mercadores e pastores, atraídos
pelas suas melodias, diziam-lhe por onde ir.
Um dia, um mercador de tecidos muito viajado, Umoja, apontou-lhe o oeste e disse-lhe:
— As ervas mais altas crescem perto da orla do mar. Vai e toca-as! Os oceanos ecoam os
seus sons. Toca devagar. As ondas hão de levar as tuas canções através das águas. Vem viajar
comigo e guiar-te-ei.
Imani seguiu o conselho do mercador e em breve se tornaram amigos. Umoja tecia por
profissão e tocava flauta por amor. As suas vozes misturavam-se em perfeita sintonia e nos
locais onde acampavam nunca estavam sozinhos.
Numa manhã radiosa e cheia de luz, Imani e Umoja chegaram à costa. Aí, enormes navios
cantavam: cush, cush, cush. A voz da areia fazia-se ouvir sob os seus pés: grish, grish, grish e as
ondas faziam lap, lap, lap contra a praia. A juntar-se à sua canção havia vozes que falavam
línguas estranhas e ouvia-se o som de cadeias metálicas: clink, clink, clink.
— Que música estranha tocam estes elementos juntos — exclamou Imani. — Tenho de
lhes juntar a minha voz.
Só que, exausto da viagem, decidiu dormir uma sesta e aconchegou-se no saco de Umoja,
que era feito de tecido e corda.
Mas foi subitamente acordado pela algazarra
das pessoas, pelo som das cadeias de metal, pelo
barulho das vagas do oceano, e pelos gritos de
Umoja, que tinha sido apanhado numa rede de
muitas malhas. Não se sabe bem como, estavam
ambos a bordo de um daqueles navios. E o navio
tinha levantado âncora.
Horrorizado, Imani começou a chorar. Deixava
para trás a sua terra, os amigos, a família, e a sua amada relva do Serengeti! Havia mar por
todo o lado! E o mar cantava uma canção triste e estranha, acompanhada por cadeias de metal,
por ondas rumorejantes, e pelas vozes das pessoas. Secando as lágrimas, Imani abraçou o
conforto da sua música e cantou toda a noite, com afinco e alma.
Através de um buraquinho minúsculo no chão do convés, Imani conseguia ver uma
multidão de gente: homens, mulheres e crianças, todos amontoados e ligados por uma corrente
comum.
Eram os mercadores, lavradores e pastores que tinha encontrado nas suas viagens.
Chamavam-no em KiSwahali, Yoruba, e em muitas outras línguas.
— Gafanhoto, traz-nos água, temos sede!
— Gafanhoto, traz-nos comida!
E muitos rogavam:
— Gafanhoto, diz à minha mãe para onde fui e que voltarei, se puder.
Ouvir e ver o que se passava no porão do navio fez com que Imani deixasse de poder
cantar. Como poderia ele fazer o que lhe pediam? A própria mãe de Imani não sabia sequer
onde ele estava!
Naquele momento, Imani soube que o destino do seu povo seria o seu destino e as
lágrimas brotaram novamente dos seus olhos.
— Não chores — pediu uma voz que vinha do porão. — As tuas lágrimas não podem
ajudar-nos.
Imani sentiu-se reconfortado, porque conhecia aquela voz. Era Umoja.
— Ires buscar água e comida para nós é-te impossível, pequenote. Mas podes dar-nos
esperança, podes dar-nos a tua música!
— Darei! — prometeu Imani. — Vão precisar tanto de música! Talvez seja mesmo tudo o
que terão quando chegarem ao sítio para onde vos levam!
Imani então cantou, ajudado por todos os bocadinhos de vegetação que encontrou no
navio, desde as despensas às galés, da cabina do capitão à torre de vigia. Aprendeu novas
canções. E, embora as cantasse com tristeza, continuava a cantar.
Quando o navio cessou de baloiçar e aportou finalmente a uma praia nova, Umoja e os
outros foram conduzidos em muitas direções. Imani ficou sozinho. Fartou-se de procurar, mas
não encontrou milho-miúdo, sorgo ou juncos. Nunca
mais conseguiria ouvir a música que a tira de erva do
Serengeti produzia. Perguntou a lavradores e
pastores que ia encontrando, mas ninguém o
compreendia.
Imani atravessou a nova terra de lés a lés. Não
deixou uma única casca de milho por virar, em busca
de sons novos que trouxessem esperança ao seu
povo. Nunca mais viu Umoja mas, quando encontrou uma ou duas das centenas de pessoas
que tinham viajado com eles, cantou-lhes as suas novas canções. Eles, por seu turno, ensinaram
estas canções a outros.
— Enquanto outrora éramos vários povos, agora somos um só, e temos uma só língua e
uma só música. Temos de viver, trabalhar, amar, e confortar-nos mutuamente nesta nova terra,
unidos por novas canções.
E foi assim que aprenderam estas novas melodias. Às vezes, cantavam-nas com tristeza e
saudade, mas nunca deixavam de cantar!
Durante as suas viagens, Imani conheceu uma gafanhota chamada Esperança, que traduziu
o nome dele para a sua língua e chamou-lhe Fé. Fé casou com Esperança e tiveram muitos
filhos, aos quais Fé passou o seu dom para cantar.
Mas, embora as ervas e vinhas desta nova pátria produzissem sons maravilhosos, não
eram iguais às de África…
E sempre que Imani levava os filhos ao círculo dos contadores de histórias, ia muitas vezes
com eles até à terra do Era uma Vez e contava-lhe contos da sua terra natal, das suas noites
claras e da erva real do Serengeti.
Sheron Williams
Imani’s Music
New York, Atheneum Books, 2002
(Tradução e adaptação)