O melhor presente de Natal do mundo
A todos quantos, de ambos os lados do conflito,
tomaram parte na trégua de Natal de 1914.
Vi-a numa loja de velharias em Bridport. Era uma escrivaninha de tampo corrediço, e o
vendedor afirmava tratar-se de uma peça em carvalho do início do século XIX. Há já anos que
procurava uma escrivaninha deste estilo, mas nunca tinha encontrado uma que pudesse comprar.
Esta não estava em bom estado: a tampa tinha várias rachadelas, uma das pernas estava mal
consertada, e havia marcas de queimaduras por todo o lado.
Não era cara, e pensei que poderia tentar restaurá-la eu mesmo. Seria um risco, um desafio,
mas era a minha única oportunidade de ter uma escrivaninha assim. Paguei o que o homem pediu,
e levei-a para a minha oficina, na parte de trás da garagem. Comecei a restaurá-la na véspera de
Natal, sobretudo devido à quantidade de visitas que havia em casa. Faziam muito barulho e eu
queria ter algum sossego.
Abri o tampo e puxei as gavetas. Cada uma delas prenunciava um desafio maior do que eu
tinha imaginado. O verniz estava a descascar um pouco por todo o lado: parecia que a peça tinha
sido salva de um naufrágio. Era evidente que esta escrivaninha tinha atravessado fogo e água. A
última gaveta estava empenada e tentei abri-la com cuidado. Mas os meus esforços não resultaram
e tive de usar toda a força que pude.
Bati-lhe com o punho e logo ela se abriu, revelando um compartimento secreto. Este
continha uma pequena caixa de folha, com uma folha de papel pautada, na qual a mão trémula de
alguém tinha escrito “A última carta de Jim, recebida a 25 de janeiro de 1915. Para ser enterrada
comigo, quando eu morrer.”
Soube, logo que o fiz, que não deveria abrir a caixa, mas a curiosidade levou a melhor sobre
os meus escrúpulos. Como sempre. Dentro da caixa estava um envelope, endereçado a Mrs Jim
Macpherson, 12 Copper Beeches, Bridport, Dorset. Peguei na carta e abri-a. Estava escrita a lápis e
datava de 26 de dezembro de 1914.
Querida Connie
Escrevo-te, feliz, porque acaba de acontecer algo de maravilhoso que quero contar-te já.
Ontem de manhã, estávamos todos nas trincheiras. Era Dia de Natal e estava uma das manhãs mais
bonitas que vira até então, tranquila e gelada como uma manhã de Natal deve ser.
Gostava de poder dizer-te que fomos nós que tivemos a iniciativa. Mas a verdade,
envergonho-me de to dizer, foram os Alemães a fazê-lo. Primeiro, alguém viu uma bandeira
branca a ondular nas trincheiras do
inimigo. Depois, ouviu-se gritar:
— Feliz Natal! Feliz Natal!
Quando nos tínhamos recomposto
da surpresa, alguns de nós retribuíram:
— Feliz Natal para vocês também!
Pensei que tudo ficaria por ali.
Todos pensámos. Mas, de repente,
vimos um deles, no seu sobretudo cinzento, a agitar uma bandeira branca.
— Não atirem, rapazes! — alguém gritou.
E logo vimos mais Alemães, uns a seguir aos outros, a aproximarem-se da nossa trincheira.
— Mantenham-se em baixo — ordenei aos meus homens. — É uma armadilha.
Mas não era. Um dos Alemães agitava uma garrafa no ar.
— É Dia de Natal. Temos cerveja e salsichas. Querem encontra-se connosco?
Por esta altura, já dezenas deles se dirigiam até nós, atravessando a terra de ninguém que nos
separava. Nenhum deles transportava armas. O soldado Morris foi o primeiro a mexer-se.
— Vamos lá, rapazes! De que estamos à espera?
Ninguém os conseguiu impedir. Eu era o oficial e devia ter travado aquilo imediatamente.
Mas nem me ocorreu. Homens de ambos os lados, vestidos com sobretudos cinzentos ou com
uniformes caqui, caminhavam em direção uns dos outros, e eu era um deles. Fazia parte daquilo.
No meio da guerra, celebrávamos a paz.
Não podes imaginar, querida Connie, o que senti, quando olhei, nos olhos, o oficial alemão
que se aproximava de mim, com a mão estendida.
— O meu nome é Hans Wolf — disse, segurando a minha mão com firmeza e afabilidade.
— Sou de Dusseldorf e toco violoncelo na orquestra da cidade. Feliz Natal!
— Sou o Capitão Jim Macpherson — respondi. — Sou professor em Dorset, no leste de
Inglaterra. Feliz Natal para si, também!
— Dorset — repetiu. — Conheço muito bem esse lugar.
Partilhámos a minha ração de aguardente e a excelente salsicha dele. E falámos, falámos sem
parar. O inglês dele era excelente, mas acontece que nunca tinha posto os pés em Dorset. Tudo o
que sabia sobre Inglaterra tinha-o aprendido na escola e nos livros que lia em inglês. O seu
escritor favorito era Thomas Hardy, e o seu livro preferido Far from the Madding Crowd.
Naquela terra de ninguém, conversámos sobre Bathsheba, Gabriel Oak, Sergeant Troy e
Dorset. Tinha mulher e um filho, com seis meses de idade. Enquanto olhava à minha volta, só via
manchas de cor cinzenta e caqui a fumarem, a rirem, a comerem e a beberem. Hans Wolf e eu
partilhámos o que restava do teu ótimo bolo de Natal. Segundo ele, o teu maçapão era o melhor
que alguma vez provara. Concordei. Concordávamos em tudo, Connie, e ele era meu inimigo.
Nunca tinha havido festa de Natal assim!
Alguém trouxe uma bola de futebol. Os sobretudos foram despidos e transformados em
postes de balizas. O jogo começou. Hans Wolf e eu assistimos e encorajámos os jogadores, batendo
palmas e batendo com os pés no chão, para afastarmos o frio. Houve um momento em que vi a
nossa respiração misturar-se. Ele viu o mesmo e sorriu.
— Jim Macpherson — disse, passado um bocado — penso que é assim que esta guerra devia
ser resolvida. Como um jogo de futebol. Ninguém morre num jogo de futebol. Ninguém fica órfão.
Nenhuma mulher fica viúva.
— Prefiro o críquete — disse-lhe. — Assim, os Ingleses ganhariam.
Rimo-nos da minha piada e assistimos ambos ao jogo. Pena-me dizer que os Alemães
ganharam 2-1. Mas Hans Wolf comentou, com generosidade, que o nosso golo fora mais bem
marcado do que o deles.
Quando o jogo acabou, já há muito tinham desaparecido a cerveja, o bolo, a aguardente e as
salsichas. Desejei felicidades a Hans e fiz votos de que voltasse a ver a família em breve, de que a
guerra acabasse depressa, e de que todos regressássemos a casa, sãos e salvos. Respondeu-me:
— Penso que é o que todos os soldados querem, sejam Alemães ou Ingleses. Tome cuidado
consigo, Jim Macpherson. Nunca o esquecerei nem esquecerei este momento.
Fez-me continência e afastou-se, devagar, como que a contragosto. Virou-se para acenar,
uma vez mais, e logo se transformou em mais um, por entre as centenas de homens vestidos de
cinzento que regressavam às suas trincheiras.
Nessa noite, ouvimo-los entoar um belo cântico de Natal, “Noite Feliz”. Os nossos rapazes
responderam com “Enquanto os pastores vigiam”. Trocámos cânticos durante mais algum tempo e,
depois, calámo-nos. Foi um momento de paz e boa vontade, que recordarei com carinho enquanto
viver.
Querida Connie, no Natal do ano que vem, esta guerra não será mais do que uma recordação
vaga e terrível. Sei, por tudo o que aconteceu hoje aqui, o quanto ambos os exércitos desejam a
paz. Em breve estaremos de novo juntos, tenho a certeza.
O teu querido Jim
Dobrei a carta e coloquei-a de novo
no envelope. Não contei a ninguém o meu
achado: guardei a vergonha da minha
intrusão para mim mesmo. Penso que foi
este sentimento de culpa que me manteve
acordado toda a noite. Na manhã seguinte,
já sabia o que devia fazer. Apresentei uma
desculpa qualquer e não fui à igreja com o
resto da família. Guiei até Bridport, que ficava apenas a uns quilómetros de distância. Perguntei a
um rapaz, que passeava o cão, onde ficava a casa.
O número 12 não passava de uma concha vazia, com um telhado em ruínas e as janelas
entaipadas. Toquei na casa ao lado e perguntei se sabiam o paradeiro de Mrs Macpherson. Um
homem de idade, em pantufas, respondeu afirmativamente. Disse que era uma senhora amorosa,
um pouco confusa, o que era normal, dado que tinha 101 anos. Estava em casa quando esta se
incendiou. Ninguém sabia como o incêndio começara, mas pensavam que deveriam ter sido as
velas. A senhora usava velas em vez de eletricidade, porque achava que a esta era demasiado cara.
Um bombeiro tinha-a salvo a tempo. Agora vivia num lar chamado Burlington House, na estrada
de Dorchester, do outro lado da cidade.
Encontrei Burlington House facilmente. Havia serpentinas de papel no corredor e uma
árvore de Natal iluminada estava montada num canto, com um anjinho no topo. Disse que era um
amigo de Mrs Macpherson e que viera trazer-lhe um presente. Podia ver, através da porta
envidraçada da sala, que estavam todos com chapéus de papel e a cantar “Good King Wenceslas”.
A Diretora também tinha um chapéu e ficou contente por me ver. Até me ofereceu uma tarte de
carne picada. Depois, conduziu-me ao quarto de Mrs Macpherson.
— Mrs Macpherson não está na sala com os outros, porque hoje sente-se bastante confusa.
Não tem família e ninguém a visita. Tenho a certeza de que vai gostar muito de o ver.
Conduziu-me até uma estufa, cheia de cadeiras de palhinha e vasos com plantas, e deixoume a sós com a idosa. Esta estava sentada numa cadeira de rodas, com as mãos no regaço. O seu
cabelo fino, branco e prateado, estava apanhado num rolo. Contemplava o jardim, absorta.
— Bom dia! — saudei.
Virou a cabeça e olhou-me com um olhar vago.
— Feliz Natal, Connie! — continuei. — Encontrei isto. Penso que é seu.
Enquanto eu falava, os olhos dela nunca se desviaram da minha cara. Abri a caixinha de
folha e dei-lha. Os olhos iluminaram-se num reconhecimento do objeto, e a sua face irradiou uma
felicidade súbita. Falei-lhe da escrivaninha, de como a encontrara. Creio que não me ouviu. Ficou
calada durante algum tempo, enquanto acariciava a carta com os dedos. Suavemente.
De repente, pegou na minha mão. Tinha os olhos marejados de lágrimas.
— Bem me disseste que vinhas pelo Natal, querido. E eis-te aqui, o melhor presente de Natal
do mundo. Vem para perto de mim e senta-te, meu querido Jim.
Sentei-me ao lado dela e beijou-me a face.
— Estava sempre a ler a tua carta. Era como se ouvisse a
tua voz dentro da minha cabeça. Era uma maneira de sentir que
estavas comigo. E agora estás mesmo. Agora que voltaste, podes
ler a carta tu próprio. Queres lê-la? Só quero ouvir a tua voz de
novo, Jim. Depois, podemos tomar chá. Fiz-te um belo bolo em
maçapão. Sei o quanto adoras maçapão.
–
Michael Morpurgo
The best Christmas present in the world
London, Egmont Books, 2004
(Tradução e adaptação)