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Blog do Vavá da Luz

A história do homem que foi empalhado e exibido como um animal

Guerreiro africano foi empalhado por comerciante francês em 1831 e exibido como troféu em museus da Europa; conheça sua história

BBC

Escritor holandês foi em busca da história por trás de El Negro
Frank Westerman/“El Negro and Me”

Escritor holandês foi em busca da história por trás de El Negro

No início do século 19, era “moda” entre os europeus recolher animais de vários lugares do mundo, levá-los para casa e colocá-los em exposição. Um comerciante francês, porém, foi além e trouxe para casa o corpo de um guerreiro africano. O escritor holandês Frank Westerman descobriu o homem em um museu espanhol há 30 anos e decidiu investigar a história por trás dele. Leia, a seguir, o seu relato:

AVISO: Algumas imagens ao longo deste texto podem ser consideradas ofensivas

“Uma cerca de arame decorativa nas cores nacionais – azul, branco e preto – marca a sepultura de um dos mais famosos – e menos invejados – filhos de Botswana: “El Negro”. Seu local de descanso em um parque público na cidade de Gaborone, sob um tronco de árvore e algumas pedras, faz lembrar o túmulo de um soldado desconhecido.

Uma placa de metal diz: ‘El Negro. Morreu em 1830. Filho da África. Trazido para a Europa morto. Levado de volta a solo africano. Outubro de 2000.’

Sua fama vem de suas viagens póstumas – que duraram até 170 anos – como as para exibições em museus na França e na Espanha. Gerações de europeus ficaram boquiabertos com o corpo seminu, que havia sido empalhado por um taxidermista. Ali ele ficou, sem nome, exibido como um troféu.

De volta a 1983, como estudante universitário na Holanda, eu acidentalmente acabei “cruzando” com ele em uma viagem de carona para a Espanha. Eu havia passado uma noite na região de Banyoles, uma hora ao norte de Barcelona. A entrada do Museu Nacional de História de Darder era coincidentemente na porta ao lado.

“Ele é real, você sabia?”, uma garota de colégio gritou para mim.

“Quem é real?”

“El Negro!”, a voz dela ecoou pela praça, acompanhada de roncos e risadas de seus amigos.

No instante seguinte, uma senhora apareceu saindo de um salão com um casaco sobre os ombros. Ela abriu o museu, me vendeu um ingresso e apontou na direção da Sala de Répteis.

“É ali”, ordenou. “Aí vá passando pelas salas no sentido horário”.

Quando eu estava no caminho para o Quarto Humano, um anexo do Quarto dos Mamíferos, passei uma parede de escalada com macacos e esqueletos de gorilas – e, de repente, comecei a tremer. Estava ali, o Negro de Banyoles, empalhado. Uma lança na mão direita, um escudo na esquerda. Curvando-se devagar, ombros levantados. Seminu, apenas com uma tanga laranja.

El Negro era um homem adulto, pele e ossos que mal chegavam a um cotovelo. Ele estava mantido em um recipiente de vidro no meio do carpete. Ele era um ser humano, mas sendo exibido como qualquer outra amostra de animais selvagens. A história ditou que o taxidermista era um europeu branco e, seu objeto, um negro africano. O reverso era inimaginável.

Local onde ficaram os restos mortais de El Negro em Botswana
Frank Westerman/“El Negro and Me”

Local onde ficaram os restos mortais de El Negro em Botswana

Ao ver essa cena, meu rosto corou e senti as raízes do meu cabelo formigarem – simplesmente por causa de uma sensação difusa de vergonha.

Senhora Lola não tinha uma explicação. Ela nem tinha um catálogo ou um livro com a história daquele homem. Me deu um cartão postal que dizia apenas “El Negro” e que trazia atrás “Museu Darder – Banyoles. Bechuana”.

“Bechuana?”, eu questionei.

Senhora Lola continuou olhando para mim. “Os cartões custam 40 pesetas cada”, ela disse.

Comprei dois. Vinte anos depois, decidi escrever um livro sobre a extraordinária jornada de El Negro de Botswana (Bechuana) até Banyoles e de volta de novo.

História

A história começa com Jules Verreaux, comerciante francês que, em 1831, testemunhou o enterro de um guerreiro no interior da África, ao norte da Cidade do Cabo, e depois retornou à noite – “não sem correr risco de morte” – para escavar até o corpo e roubar a pele, o crânio e alguns ossos.

Cartão Postal vendido no Museu Darder, na Espanha
Frank Westerman/“El Negro and Me”

Cartão Postal vendido no Museu Darder, na Espanha

Com a ajuda de um fio de metal que funcionava como a espinha, pedaços de madeira que funcionavam como membros, e enrolando tudo isso em jornais, Verreaux preparou e preservou as partes do corpo roubadas.

Depois, ele colocou o corpo em um navio para Paris junto com outros corpos de animais conservados. Em 1831, o corpo do africano apareceu em uma exposição na Rua Saint Fiacre, número 3.

Em reportagem, o jornal Le Constitutionnel elogiou o “corajoso Jules Verreaux, que deve ter encarado perigos entre nativos que são tão selvagens quanto negros”. Esse texto deu o tom e, de repente, o “índivíduo do povo de Botswana” atraía mais atenção do que as girafas, hienas ou avestruzes.

“Ele é pequeno em postura, tem pele preta e sua cabeça está coberta por uma lã de cabelos crespos”, dizia o jornal.

Mais de meio século depois, o “Botswano” apareceu na Espanha. À margem da exibição mundial em Barcelona em 1888, o veterinário espanhol Francisco Darder apresentou o homem em um catálogo como “O Botsuano”, com um desenho em que ele é visto usando uma ráfia (como uma folha de palmeira) e segurando uma lança e um escudo.

Até o século 20, já tendo sido levado a Banyoles, uma cidade pequena ao pé dos Pirineus, as origens do homem haviam sido majoritariamente esquecidas, até que ele ficou conhecido como simplesmente “El Negro”.

El Negro, como ele era exibido no museu em Barcelona
Frank Westerman/“El Negro and Me”

El Negro, como ele era exibido no museu em Barcelona

Em algum momento, a tanga laranja “reveladora” que Jules Verreaux havia colocado nele foi substituída por curadores católicos romanos do Museu de Banyoles, que o vestiram com uma saia laranja muito mais “recatada”. Sua pele também ganhou um polimento de sapato para fazer com que ele parecesse ainda mais negro do que era.

De pé em sua “caixa” de exibição, levemente curvado e com um olhar penetrante, El Negro incorporava de uma forma mais pungente e angustiante, os aspectos mais obscuros do passado colonial europeu. Ele confrontava visitantes de frente com teorias de “racismo científico” – a classificação das pessoas como inferiores ou superiores baseado em medidas de crânio e outros pressupostos falsos.

Conforme o século 20 avançava, El Negro se tornou mais um anacronismo. Não só houve aumento de culpa e consciência sobre o fato de que seu corpo e túmulo haviam sido violados, como ficou clara a ideia de que ele, como um artefato europeu do século 19, refletia ideias que haviam se tornado universalmente insustentáveis.

Tudo começou a mudar em 1992, quando um médico espanhol de origem haitiana sugeriu, em uma carta para o jornal El País, que El Negro deveria ser retirado do museu. Os Jogos Olímpicos estavam vindo para Barcelona naquele ano e que o lago de Banyoles era um dos locais de competição. Com certeza, escreveu Alphonse Arcelin, atletas e espectadores que visitassem o museu local poderiam se sentir ofendidos com a visão de um homem negro empalhado.

O pedido de Arcelin foi apoiado por nomes importantes, como o do pastor americano Jesse Jackson, e o jogador de basquete Magic Johnson. O ganês Kofi Annan, então secretário-geral assistente da ONU, condenou a exibição dizendo que ela era “repulsiva” e “barbaramente insensível”.

Mas, devido à resistência forte do povo catalão, que abraçou El Negro como “um tesouro nacional”, foi preciso esperar até março de 1997 para El Negro desaparecer de vista do público. Ele foi armazenado e, três anos depois, em 2000, começou sua jornada final de volta para casa.

Volta à África

Seguindo longas consultas com a Organização para a Unidade da África, a Espanha concordou em repatriar os restos humanos para Botswana para um novo enterro cerimonial em solo africano. O primeiro passo da repatriação foi uma viagem à noite em um caminhão para Madri.

Uma vez na capital, seu corpo empalhado foi “desmontado” e desprovido de tudo de “não humano” que havia sido adicionado, como seus olhos de vidro. El Negro foi “desfeito”, como se tudo o que Jules Verraux havia feito para conservar seu corpo por 170 anos tivesse sido rebobinado.

Sua pele, porém, estava dura e rachou. Por causa disso e por causa do tratamento com polimento de sapato, eles decidiram mantê-la na Espanha. De acordo com uma reportagem de jornal, ela foi deixada no Museu De Antropologia de Madri.

Assim, o caixão que ia para Botswana tinha apenas o crânio, além de alguns ossos de braços e pernas. Os restos do guerreiro de Botswana ficaram expostos na capital Gaborone, onde cerca de 10 mil pessoas passaram por ele para prestar as últimas homenagens. No dia seguinte, 5 de outubro de 2000, ele foi enterrado em uma área cercada no Parque Tsholofelo.

Foi um enterro cristão. “No espírito de Jesus Cristo”, o padre disse com a mão na Bíblia, “que também sofreu”. Um toldo, apoiado por dois postes, protegeu os convidados de honra do sol.

“Nós estamos preparados para perdoar”, disse o então ministro das Relações Exteriores Mompati Merafhe para o público. “Mas não podemos esquecer os crimes do passado, para que não corramos o risco de repeti-los.”

Houve bênçãos, cantos e danças.

Depois disso, o túmulo foi esquecido por muitos anos e o gramado ao redor dele foi usado como campo de futebol. Mais recentemente, porém, o governo de Botswana restaurou o local, transformou-o em uma área de visitação e colocou várias placas explicando a importância dele.

Mas, em 2016, ainda não se sabe quem esse “filho da África” era, qual era seu nome ou exatamente de onde ele veio.

Uma autópsia feita em um hospital catalão em 1995, no entanto, trouxe algumas informações. O homem que se tornou mundialmente conhecido como El Negro viveu cerca de 27 anos. Ele tinha cerca de 1,35m e 1,4m e provavelmente morreu de pneumonia.”

Fonte: Último Segundo – iG/VAVADALUZ

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