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Blog do Vavá da Luz

CLUBE DA HISTORIA EM : A rosa branca

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Quando as guerras começam, as pessoas aplaudem. É mais tarde que ficam tristes.

Os homens daquela cidade foram combater pela Alemanha.

Rosa Branca e a mãe juntaram-se à multidão e despediram-se deles. Uma banda tocou, todos bateram palmas e o presidente da câmara fez um discurso enfadonho. Contaram-se piadas, cantaram-se canções e os homens mais velhos deram conselhos aos jovens soldados. Rosa Branca tremia de excitação, mas a mãe disse que era do frio, porque o inverno se aproximava.

As pessoas habituaram-se a ver camiões a arrastar-se pelas ruas estreitas, de dia e de noite, e lagartas de tanques pesados a faiscar nas pedras das calçadas. O barulho era ensurdecedor. Os soldados cantavam, sorriam e piscavam o olho às crianças, como se fossem velhos amigos, e as crianças saudavam-nos sempre.

Rosa Branca ia muitas vezes às compras para a mãe.

Agora, havia longas filas à porta das lojas, mas ninguém se queixava. Todos sabiam que os soldados necessitavam da comida, porque estavam sempre famintos.

Contudo, nem tudo mudou. Rosa Branca continuou a brincar com os amigos, a fazer os deveres depois do jantar e a ir para a escola bem cedo, com o almoço na pasta. Quando as aulas acabavam, a menina percorria o trilho ao longo do rio, que era o seu percurso de regresso favorito. A mãe estava sempre à espera dela com uma bebida quente.

Ninguém conhecia o destino daqueles camiões, embora todos falassem deles. Algumas pessoas diziam que os camiões se dirigiam para um local que ficava mesmo à saída da cidade.

Certo dia, um dos camiões avariou. Enquanto Rosa Branca observava dois soldados a tentar reparar o motor, um rapazinho saltou das traseiras do veículo e correu pela rua abaixo. Um dos soldados gritou:

— Para ou disparo!

O rapaz esbarrou com o presidente da câmara, que o arrastou pela nuca até junto dos soldados. Furioso, um deles gritou com o rapaz, que se desfez em lágrimas.

Quando o atiraram para dentro do camião, Rosa Branca entreviu várias faces pálidas na escuridão. A porta foi fechada com estrondo e o veículo arrancou no meio de uma nuvem de fumo de gasóleo.

A menina ficou indignada pela maneira como o rapazinho tinha sido tratado, e decidiu seguir o camião através da cidade. Rosa Branca corria atrás dele, porque conhecia todos os atalhos, e as ruas sinuosas obrigavam o camião a ir devagar.

Rosa Branca correu por trilhos e campos, saltou valas e poças de água gelada, e contornou vedações e barreiras em locais proibidos. Finalmente, apanhou um atalho pela floresta e sentiu ramos despidos a arranharem‑lhe a cara. A estrada passava mesmo em baixo e o camião já ia longe. A menina estava cansada e já pensava em desistir quando se deparou com uma clareira.

De repente, diante dos seus olhos incrédulos, surgiram dezenas de crianças silenciosas e imóveis, que a fitavam do lado de lá de uma cerca de arame farpado. Pareciam não respirar e os seus olhos eram grandes e cheios de mágoa. Permaneceram especadas como fantasmas, enquanto ela se aproximava. Uma delas pediu-lhe comida e logo todas se uniram no mesmo apelo.

— Dá-nos comida. Ajuda-nos, por favor.

Mas Rosa Branca não tinha nada para lhes dar. Absolutamente nada.  

Quando os gritos pararam, reinou de novo o silêncio.

O sol de inverno estava prestes a pôr-se e o vento gelado fazia com que o rumor do arame farpado parecesse um canto pungente. A menina iniciou o caminho de regresso a casa, perseguida por aqueles olhos tristes e famintos.

Não disse a ninguém o que vira, nem sequer à mãe.

Durante aquele inverno rigoroso, todos os dias levou comida extra para a escola e, em casa, guardava o que podia do que a mãe lhe punha no prato. Contudo, Rosa Branca estava cada dia mais magra…

As pessoas da cidade deixaram de ser tão pacientes nas filas de racionamento, porque ninguém tinha comida suficiente. Rosa saía da escola logo que podia e dirigia-se à floresta, segurando com força o saco pesado. As crianças estavam sempre à sua espera, junto da cerca de arame farpado. Quando pegavam na comida, faziam-no com as mãos magras a tremer e tinham cuidado para não tocar nos fios eletrificados. Rosa Branca disse-lhes o seu nome e contou-lhes coisas da escola. As crianças disseram os nomes delas e pouco mais. Agarradas umas às outras, olhavam fixamente para lá da vedação.

Rosa Branca ia à floresta, mesmo de noite. A neve começara a derreter e o trilho tornara‑se lamacento. Havia mais pessoas a viajar a coberto da escuridão: eram milhares de soldados, que, exaustos, feridos e deprimidos, atravessavam a cidade, sem canções ou acenos.

 

Certa manhã, todos os habitantes decidiram partir, com medo do que viesse a acontecer. Transportando sacos e mobília, carregaram carrinhos de mão e carroças. O presidente da câmara foi um dos primeiros a ir-se embora, já sem a braçadeira que ostentara com tanto orgulho.

Nesse dia, Rosa Branca desapareceu. A mãe, frenética, procurou-a pela cidade vazia e a todos perguntou se tinham visto a filha.

— Deve ter ido à frente com amigos — disseram. — Não se preocupe. Faça as malas e venha connosco.

Um nevoeiro cerrado amortalhava a floresta e era difícil ver o caminho. Rosa Branca tinha os pés cobertos de lama e gelados e a roupa rasgada pelos ramos despidos. Quando chegou à clareira, estava tudo tão diferente que pensou estar a sonhar… Havia outras figuras a moverem-se por entre o nevoeiro. Eram soldados cansados e cheios de medo, que viam perigos em todo o lado. Quando Rosa Branca se virou para ir embora, ouviu-se um disparo, um som agudo e terrível, que ecoou por entre as árvores nuas.

 

Entretanto, soldados diferentes começaram a atravessar a pequena cidade. Falavam uma língua estranha, vestiam uniformes desconhecidos, mas, embora estivessem cansados, estavam contentes. A guerra estava a chegar ao fim.

A mãe de Rosa Branca nunca a encontrou.

 

À medida que as semanas passavam, começou uma outra invasão, mais agradável. O frio recuou e ervas frescas avançaram por todo o território. Viram-se explosões de cor. As árvores vestiram uniformes novos e brilhantes e desfilaram sob o sol. As aves tomaram as suas posições e cantaram uma mensagem simples.

A primavera tinha triunfado.

 

1 No original, Rose Blanche. O autor dá à heroína da história o nome do movimento de resistência mais conhecido durante o Terceiro Reich. O Weisse Rose (Rose Blanche, em francês, Rosa Branca em português), constituído por jovens universitários alemães, não surgiu de uma ideologia política mas da indignação pela forma como os alemães aceitavam o nazismo e a guerra feita em seu nome. Descobertos enquanto distribuíam panfletos na Universidade de Munique, os irmãos Hans e Sophie Scholl foram presos pela Gestapo, a polícia política de Hitler. Juntamente com Christoph Probst, foram condenados à morte e e xecutados no mesmo dia. Os demais membros do grupo de Munique foram executados após julgamentos sumários, entre abril e outubro de 1943.
Ainda hoje, os membros do Weisse Rose são considerados heróis na Alemanha, pela forma como deram a sua vida pela liberdade de todos.
(N.T.)

Roberto Innocenti e Ian McEwan

Rose Blanche

London, Red Fox Books, 2004